Sim, com ressalvas


Sei que estou a interromper o seu estudo sobre o conceito de pulsão em Freud, ouvi dizer-me de mansinho a minha fada, mas estou muito preocupada comigo porque não imagino como mandar bugiar um coração destroçado; há uns dias que ando com a face encostada à melancolia e até fiquei afónica. Acredite, respondi-lhe tentando desanuviar o ambiente, que essa sua forma catita, atrevida e farejadora do saber (que a leva agora a espreitar, por cima do meu ombro direito, espiolhando o que estou a estudar), me agrada sobremaneira; gosto da seda de andorinha das cócegas que a sua franja causa na minha orelha. Mas, desta vez, creio ter-se enganado com o seu desabafo porque não sei se a consigo ajudar e, muito menos, se a consigo ajudar a partir do conceito de pulsão; suponho que era o que estava à procura que eu fizesse. Além disso, sabe bem melhor que eu que o que actua a nível do psiquismo não é a pulsão em si, mas sim o que Freud denomina de “representante psíquico da pulsão”. Claro que sei, interrompeu-me sem cerimónia e com o olhar magoado. Sei muito bem que esse “representante psíquico da pulsão” é constituído pela representação pulsional e pelo afecto pulsional; e, sei que este afecto (que possui um aspecto quantitativo e qualitativo) é a ressonância afectiva da representação pulsional. Mas de facto, continuou, o que eu pretendia, era dizer-lhe que o meu coração está destroçado porque as pulsões mais elementares estão cosidas (com linha elegante e colorida, diga-se) ao tecido dos meus circuitos neuronais. Mas, por uma razão estranha que desconheço, não me estão acessíveis temporariamente; a mim, imagine, que regularmente gravo, sempre que me apetece, o conteúdo da minha memória. Na minha forma de ver, arrisquei afirmar que tal como o nosso sistema entérico e o nosso sentido de atracção, o nosso universo interior nos é praticamente desconhecido. E que, por isso, a ideia (que lhe atravessava o pensamento) de “mandar bugiar um coração destroçado” não fazia sentido. Não faz sentido? - Retorquiu a modos que amuadaNão faz sentido, respondi, porque o seu coração é não só a sua forma biológica de sentir, de pensar e de se conhecer a si própria quanto alimenta a sua voz que todos os dias se levanta acesa para a vida consciente, e que, a toda a hora, me leva a mim pela mão. Estou pasmada e a adorar ouvi-lo; até lhe entrego um sorriso embrulhado num abraço, garantiu-me. Entrego-lhe o sorriso embrulhado num abraço, meu caro, porque me emociona a sua tentativa de me animar e, porque também, há muito anos atrás, tentei responder a uma questão que a mim própria coloquei, enquanto deambulava no átrio da entrada do Templo de Apolo em Delfos onde, como sabe, está o aviso grego de “Conhece-te a ti próprio”. Questão a que, na altura e passo a passo, dei um contorno simples porque sei que qualquer coisa menos boa que nos acontece, nos afecta emocionalmente: será o meu coração desobediente? Que ternura nas palavras e que bem formulada pergunta! - Murmurei baixinho, interrompendo o seu discurso; tenho também uma pergunta (com contorno tosco, já sei, não diga!) para lhe fazer: acredita que conseguiremos algum dia conhecermo-nos mais profundamente se estudarmos a nossa neurobiologia? Sem me deixar respirar, disparou: sim, com ressalvas. Com ressalvas, porque estou convencida (não tenho mesmo dúvidas, esta é que é a verdade) que há uma voz interior, independente da biologia, que orienta as nossas decisões e que incessantemente nos murmura a coisa certa a fazer; muitas vezes, deixe que lhe diga, me interrogo: será que essa voz só mora no meu coração e só se demora neste meu coração destroçadoSim, com ressalvas. – Respondi, plagiando-a. E sorri, divertido e ao de leve, quando, com ar cúmplice, segredei à brisa  fria da madrugada:
 - sendo ela tão sábia e tão guicha, as ressalvas que se cuidem!

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