A vida num caldudo quente
Hoje é
sábado de castanhas! - Pensei deliciado,
à medida que (eram cinco horas da manhã) ia acordando e que o sono se ia
embora, abrindo de par em par as pestanas à luz do dia. Eis senão quando, e sem
se fazer anunciar, a inefável fada que todas as manhãs me espreita e me espia,
me acena com um guardanapo de papel na mão, dizendo, que nada lhe parecia mais adequado que o
desejo, desde que esse desejo fosse um desejo adequado. Não estou a perceber nada do que
pretende dizer-me, interrompi-a imediatamente, ao mesmo tempo que lhe perguntava,
se o meu desejo de querer comer castanhas assadas, na véspera do dia de S.
Martinho (dia em que também se vai à adega e prova o vinho), não era um desejo
adequado? Não e sim, respondeu. Não, porque qualquer desejo seu só é adequado se eu
estiver perto si; sim, porque o seu desejo de
querer comer castanhas assadas, é um sinal de que elas também são uma espécie
de pacotinhos de açúcar e de proteínas necessários à sua sobrevivência. Pense
comigo (se for capaz; duvido que consiga acompanhar o meu raciocínio, mas
enfim!); verá que só porque as castanhas são um alimento útil à sua
sobrevivência, é que o seu cérebro as considera saborosas. E, já agora (escusa
de corar, deixe de ser piegas), diga-me com sinceridade, se quando poisa os
olhos em mim, não fica quase que intoxicado com tanto deslumbramento. Não me
custa nada, assegurei-lhe, dizer que vejo em si uma manifestação de excesso de competências; mas
também quero dizer-lhe que o excesso de competências também pode ter efeitos
secundários nocivos. Ora essa! - Ripostou, em jeito mais ou menos agressivo. Só falta que
me considere uma doidivanas não inteligente e não criativa; mas, como gosto de si, não vou
irritá-lo mais. Sabe que mais? A sua cara é como o algodão e não me engana;
está mortinho por saber o que escrevi neste meu guardanapo de papel; bem vejo que não tira os olhos dele. Paciência, mas vai ter que
manter essa sua tensão em alta pressão, por que não lhe vou revelar o segredo
que rabisquei, a menos que me faça uma vontade: vai ter que almoçar comigo. Não quero pensar nisso, martelei as palavras com convicção, afirmando que ela não me iria conseguir
impedir de ir comer castanhas assadas. Claro que consigo e até já decidi, ripostou, que hoje
não vai comer castanhas assadas! – E, sorrindo abertamente, garantiu
que já tinha pronto um caldudo para comermos os dois num almoço íntimo, enquanto trocaríamos impressões sobre o segredo que ela tinha escrito
no guardanapo. Já percebi, continuou, que não sabe o que é um caldudo; eu digo-lhe como o
preparei: pus castanhas piladas de molho, de um dia para o outro; depois de
retirar todas as “pelesinhas” que tinham ficado agarradas às castanhas, coloquei
as castanhas a cozer numa panela elegante; esmaguei, de seguida (e sempre a
pensar em si, claro!) com um garfo todas as castanhas quando já estavam cozidas
e deitei fora a água; reguei as castanhas com leite quente e voltei a deixar
cozer, em lume brando, até um caldo de castanha começar a aparecer. Bem, meu caro, aquele caldo tanado, polvilhado com açúcar e canela, é o caldudo
que nós os dois iremos saborear, quente e a fumegar. Para o convencer, ainda
lhe digo que foi numa conversa de pé de orelha, há muitos anos atrás, com o
Jacob von Uexkull, que ele, ao saborear o meu caldudo quente, condensou e
traduziu no conceito de umvelt (o meio envolvente, ou mundo que nos
rodeia), a parte da realidade que nós conseguimos
percepcionar. Não a deixei terminar para lhe dizer que eu já tinha decidido deixar as
castanhas assadas para outro dia, porque a vontade de experimentar o caldudo
quente, a curiosidade de conhecer o seu segredo escondido no guardanapo e,
sobretudo e acima de tudo, a oportunidade única de almoçar com ela, eram mais fortes que eu. Mas que
diabo serão castanhas piladas? Piladas?!
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