Todas as viagens começam com um problema


Até a mim que sou fada e que já vivi várias vidas, ciciou-me pela manhã a minha fada favorita, acontece, em momentos de impasse nesta minha actual vida, estar em vias de renunciar a tudo, de prescindir do meu quotidiano e daquilo que gosto de fazer, se tivesse a certeza de que podia, com essa decisão, estar em paz e viver com quem eu sempre quis. A que propósito, perguntei, vem este seu desabafo e que necessidade tem de me acordar tão cedo? Meu caro, deixe-se de perguntas tolas, sussurrou baixinho, eu preocupo-me consigo e tenho a certeza de que precisa de fazer uma viagem criativa. As suas últimas conversas comigo parecem ter-lhe provocado um sentimento de frustração e sinto no seu peito uma espécie de dor surda porque não encontra uma resposta; até pensa que está num beco sem saída, verdade? Sim, é verdade, não custa reconhecer que assim é, respondi levemente confuso. Mas, se quer que lhe diga, também penso que esta espécie de bloqueio mental, pode ser aproveitado e entendido como uma parte essencial e importante de um processo criativo; imagine que até penso que antes de encontrar uma resposta (antes até de saber, por si, a pergunta), prefiro afundar-me numa desilusão, convencido como estou de que a solução não está do meu lado e ao meu alcance porque não o mereço. Eu bem sabia, interrompeu-me enquanto alisava a franja rebelde, que valia a pena acordar cedo e desfazer-se desse seu mau humor matinal. Insisto em lhe dizer que, muitas vezes, quando deixamos de procurar a resposta, é que esta se revela; e olhe, tenha cuidado, porque a imaginação também é dotada de um perverso sentido de ironia. Se decidir fazer uma viagem criativa, garanto-lhe que a solução para os seus indecisos e malfadados estados de alma, não chegará a conta-gotas. A solução chocará com a altitude, o frio intenso e a plenitude de uma paisagem deslumbrante; nesse momento a resposta que procura, tornar-se-à incrivelmente óbvia e eu estarei muito perto de si. Essa sua certeza, murmurei atónito, faz-me pensar no estereótipo da intuição que identifico com as descobertas de Arquimedes numa banheira e de Newton debaixo de uma macieira; importa-se que sorria um pouco? Pode sorrir, se lhe apetece, assentiu ruborizada. A verdade é que a experiência da intuição começa sempre com um impasse, um bloqueio; algumas vezes, impasses e bloqueios deveras complicados. Recordo-me, por exemplo, de ter ouvido Pascal dizer que "o ser humano é igualmente incapaz de conceber o nada de onde saiu e o infinito que o devora". Este conjunto de razões leva-me a sugerir-lhe que faça não uma viagem mas sim que faça uma viagem criativa. É o tempo. Porque para se reinventar tem de acreditar em mim e ser um homem de fé. Garanto-lhe (eu seja ceguinha de gota serena, se tal não acontecer) que se fizer a viagem criativa e se abrir a caixa negra da imaginação no interior do seu cérebro, eu estarei sempre consigo para todo o sempre. Absolutamente fascinado e sentindo o meu córtex a partilhar segredos comigo (em jeito de que há alguém na minha cabeça mas que não sou eu), pensei de mim para mim: vou viajar rumo ao norte e vou subir o íngreme caminho de um monte até encontrar um castelo em ruínas. Sempre quero ver se ela cumpre o que promete!

Comentários

Mensagens populares