A travessia de um espelho


Quero confrontá-lo com um paradoxo que me apaixona e me delicia sobremaneira, ouvi murmurar, na manhã fresca e em surdina, a minha fada sábia. Ou seja, explicitou: como entender que sendo a individuação uma característica da espécie humana, a mesma seja acompanhada por uma imitação generalizada que unifica o grupo, impondo-lhe a produção de semelhanças que o dinamizam e garantem a sua perpetuação? Na minha forma de ver, respondi sem pensar, cada um de nós é um modelo para o outro em reciprocidade e difusão que só param onde acaba a proximidade. Se é como refere, interrompeu-me, então a imitação é de ordem biológica e acaba quando a proximidade acontece; é, nestes termos, uma capacidade do próprio cérebro que exige, em troca dessa capacidade, a participação efectiva e afectiva de um outro. Mas tenho algumas dúvidas quanto à sua expressão “que só param onde acaba a proximidade” porque, por vezes, sinto necessidade de o imitar a si (estranho, diga-se!) mesmo quando o sinto próximo, ainda que quase sempre no avesso da vida consciente. Nada tenho a opor ao que acaba de afirmar, murmurei deveras intrigado com o rumo da conversa; mas seria interessante apresentar provas que garantam a fiabilidade da sua afirmação e a pertinência das suas dúvidas. Excelente forma de expressar a sua ignorância, disse, sorrindo. Quer provas quanto à fiabilidade da minha afirmação? Quer provas de que a imitação é o cimento da sociedade, é isso? Aí tem uma. A melhor prova reside na observação da imitação dos animais não humanos (tenha cuidado e não confunda adestramento com aprendizagem por imitação). Se fizer um leve esforço (coisa que para si já é uma tarefa árdua) e procurar informação, verá que nos primatas e nos pássaros sociais (papagaios ou corvos, não se esqueça!), a imitação se desenvolveu em resposta a constrangimentos do seu meio de vida, algo equivalente aos constrangimentos impostos pela vida em sociedade dos animais humanos. Para viver em grupo, é necessário reconhecer o outro, identificá-lo e ser capaz de decalcar o seu próprio comportamento no do outro. Tudo bem, interrompi sem cerimónia, mas porque é que tenho que recorrer aos comportamentos dos animais não humanos? Será que não posso observar o comportamento de uma criança pequena? Claro que sim, até admito que a sua interrupção tenha muito sentido para esclarecer as minhas dúvidas quanto à proximidade; eu que sou fada, que venho dos lados do mar e que até já vivi numa cidade de água (a água é mãe, matriz e regaço, sabia?), vi o mar pela primeira vez nos olhos da minha mãe, onda após onda e, depois, batendo nas falésias, respondeu enfadada. Mas, continuou, em matéria de imitação nenhum animal suplanta o ser humano, tem razão. Deixe-me insistir consigo e dizer-lhe que na imitação gestual a criança brilha pelo talento embora não haja consenso quanto à idade em que começa a imitação. Se Darwin também tinha dúvidas (recordo-me bem das longas conversas vadias que tivemos sobre o assunto) ao dizer que a imitação começava aos quatro meses, já outros de quem não guardo grandes recordações (Melzoff e Moore), entendem que a imitação se manifesta a partir das primeiras horas de vida; numa criança pequena destaca-se a imitação de si mesma e a propensão para a repetição ritmada de sons e gestos manuais. A propósito, sabia, meu caro, que para se tornar pessoa (quando digo pessoa, digo um ser capaz de razão e tendo o sentido da sua existência), uma criança pequena segue um percurso iniciático? Passa da imitação do outro à de si e, depois, da imitação de si à consciência de si. Cada passagem implica a travessia progressiva de um espelho. A travessia progressiva de um espelho? A travessia de um espelho? – Perguntei, embasbacado. Ajeitando a franja, respondeu-me com uma gargalhada bem sonora, dizendo enigmaticamente e martelando as palavras: uma criança pequena (da mesma forma que uma fada que ignora a flor da água mas que conhece o seu aroma) vê num espelho um rosto que a olha com os olhos abertos; o rosto é o espelho da alma e o ofício da alma é desaprender.
Ela existe mesmo, é humana e eu gosto dela, pensei comigo!

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