A percepção do mundo é um programa de televisão em directo


Ajeitei a almofada, virei-me para o lado direito (gosto pouco de pressionar o coração) e ia já iniciar um sono de justo. Eis que, sem ser convidada, a minha fada, birrenta quanto baste, entendeu que era hora de me provocar, soprando-me no ouvido esquerdo (ao mesmo tempo que estalava os dedos para me acordar): estive a matutar na sua ideia (um pouco estapafúrdia, diga-se) de assentar o artigo que quer publicar, na ideia de que os sons e os traços visuais são a única forma de a realidade ensinar o cérebro. Linda hora para me falar desse assunto, respondi ensonado. Não é verdade que a audição e a visão são as únicas construções do cérebro em confronto com a realidade, ainda que processadas a velocidades diferentes? Claro que não, afirmou com ar de cientista louca e de franja à banda. A percepção do tempo também é uma construção do cérebro e por essa razão o seu mundo perceptual está sempre atrasado em relação ao mundo real. A sua vida consciente é como um programa de televisão em directo que não é em directo. Alto lá, interrompi-a sem cerimónia (a ideia de dormir, de mão dada com o cansaço do dia, já tinha ido dar uma volta), ou bem que o programa de televisão é em directo ou não é em directo. Que raio de vida a minha, ouvi-a murmurar. Tenho que lhe explicar tudo. Meu caro, os programas de televisão em directo que têm qualidade, não são realmente em directo. E sabe porquê? Claro que não sabe. Eu explico, veja se presta atenção. Não são realmente em directo e são emitidos com alguns segundos de atraso, não vá dar-se o caso de alguém usar linguagem imprópria, de alguém se magoar ou até (e olhe que isso pode acontecer) alguém perder alguma determinada peça de roupa. Espero que tenha percebido agora (com a excelente explicação que acabo de lhe oferecer) que a sua vida consciente reúne muita informação antes de a emitir em directo. Mal seria que depois desta sua explicação tão segura e tão clara, atrevi-me a interromper, eu não tenha entendido o que pretendia dizer, ou seja, que o tempo é uma construção mental e não um barómetro do que acontece na realidade exterior a cada um de nós. Resposta de principiante mas com algum sentido, martelou as palavras, rindo-se. Sei bem que quando o acordei há minutos, os seus olhos e os seus ouvidos registaram a informação do estalo dos meus dedos, mas o processamento neuronal do estalo no seu cérebro levou mais tempo; o que significa que o seu mundo perceptual está sempre atrasado relativamente ao mundo real, verdade? Sim é verdade, respondi de imediato. Mas também é verdade que quando a sinto a si perto de mim, o meu cérebro ajusta as expectativas, para que aconteça o máximo de proximidade temporal e espacial. Tenho e sinto esta certeza, não duvide do que lhe digo. Ajeitando a franja, sossegou, afirmando com ar convicto, que dava de barato a minha certeza e que a melhor maneira de eu calibrar as minhas expectativas em relação a ela, era interagir com a vida de forma saudável e agradecida. E sem me deixar responder, resolveu provocar-me mais uma vez, sugerindo-me, enigmaticamente (ou talvez não!): da próxima vez, quando alguém lhe disser “Vais acreditar em quem, nela ou nos teus ouvidos e olhos mentirosos?”, pense bem antes de responder para não voltar a cometer os mesmos erros. Uma asneira faz-se depressa, sem pensar e paga-se durante toda a vida, é isso?- Perguntei. Sim é, respondeu. Numa asneira (sabe isso, não sabe?), meu caro, os murmúrios éticos da mente são silenciados e a percepção do mundo não é um programa de televisão em directo; é sim, um programa de televisão de uma desconchavada, rasca, cretina e supinamente bastarda casa dos segredos.
Eureka! – Disse de mim para mim, antes de adormecer com as cócegas afectivas da franja de uma fada. 

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