Um privilégio e uma guia

Quando uma criança nasce, está sozinha, sabia?- Perguntou-me a minha tão presente fada quando a senti e vi, em forma de estrela, à meia noite. Uma criança está sozinha quando nasce? Então a presença dos pais não conta para nada? Essa agora!- Interpelei-a. Pois claro que conta, respondeu com enfado. E, conta tanto que serve para a despojar dessa solidão inicial; o que significa que, a partir desse momento de nascimento para a vida, aquela criança passa a não poder viver sem a presença afectiva e efectiva de um outro (no sentido filosófico do termo). Nesse preciso momento, passa a viver no coração de outros e outros passam a viver no seu coração. Entendeu agora porque passo a vida a dizer-lhe que é pelo coração que nós nos conhecemos? Não sente que trocamos de coração todos os dias? Trocamos de coração sim, mas é no cérebro que a gestão dessa troca acontece, verdade?- Questionei. Claro que é no cérebro que essa gestão (como lhe chama) acontece; porque essa necessidade ardente (ardente quer dizer que está a arder, não se esqueça; já ouviu falar em sarça ardente?) de um outro, está inscrita no cérebro. Além do mais, esta necessidade de um outro é, no cérebro, uma necessidade comparável à necessidade de oxigénio e de glucose. Quer um exemplo ou quer que lhe faça um desenho? Aí tem um exemplo. Olhe para mim que apenas peso cerca de cinquenta quilos. Pensa que eu podia voar se, além de comer (pouco) às refeições, me não alimentasse de olhares, gestos e manifestações de carinho? Estranhamente acho que percebi, respondi a medo. Significa então que quando uma criança nasce, não se alimenta apenas do leite da mãe (a mãe é o primeiro outro que, quando nasce, já conhece) mas também dos seus gestos e das suas carícias. Significa ainda que, graças ao despertar dos sentidos, essa criança se instala no coração da mãe e no coração de outros. Bem pensado e bem dito. Conseguiu surpreender-me, interrompeu-me a fada dizendo:
- estou feliz; percebe agora (até que enfim) que foi no momento em que nasci fada que aprendi a abrir o meu coração aos outros, oferecendo-lhes o meu saber inato e as minhas descobertas; foi nesse momento mágico que me encontrei com a vida e que também me encontrei consigo.
Essa troca de coração determinou que eu a considere o fio condutor da minha existência?- Perguntei.
Óbvio! Eu sou o seu privilégio e a sua guia. Fui eu que o escolhi.
Disse e sorriu.

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