Sentimentos primordiais
A ideia de que o corpo é o alicerce da mente consciente, pode ser um bom ponto de partida para ultrapassar a sua modorra num dia quente, que lhe parece? Ouvi dizer, meio ensonado, a fada guicha e convencida. Não me parece nada, não me apetece pensar no assunto, respondi eu, meio agastado. É o costume, desde que tenha os miolos quentes, a sua educação e a sua pequena capacidade de pensar desaparecem; que raio de vida eu passo consigo! – Insistiu ela, dizendo: eu ajudo um pouco; os aspectos estáveis da função corporal estão representados no cérebro na forma de mapas que contribuem com imagens para a mente ( para a sua mente, pelos vistos, contribuem pouco).
Acordado, (e bem acordado) com o impacto seco e continuado de uma vassoura colorida, não tive alternativa senão continuar o raciocínio dela. Pois se assim é, disse eu, quer as estruturas cerebrais que fazem o mapeamento do corpo quer as imagens mentais do corpo aí produzidas, constituem algo que já prefigura o eu, ou seja, o proto-eu. Meu caro, estou surpreendida consigo, sussurrou de mansinho. De facto tem razão, mas tenha atenção que, metaforicamente (ainda tem uma leve ideia do que seja uma metáfora?), o corpo é como uma pedra onde se ergue o proto-eu eu; e o proto-eu é um eixo à volta do qual gira a mente consciente, sendo os seus produtos básicos e elementares os sentimentos primordiais que são um tipo especial de imagem graças à interacção corpo-cérebro.
Sim, sei, interrompi-a de forma convicta. Aprendi consigo, há uns tempos, que o eu se forma por etapas distintas e que a primeira etapa é a constituição dos sentimentos primordiais. Diz que aprendeu comigo, mas baralha tudo (o que eu passo consigo!). Por favor, deixe de me interromper a todo o momento, esbracejou irritadíssima. O que eu lhe disse, é que temos dois eus: o eu nuclear que se desenvolve numa sequência de imagens que descrevem algo a interagir e a modificar o proto-eu; e o eu autobiográfico definido em termos de conhecimento ligado ao passado e conhecimento ligado ao futuro. Tenho que fazer um desenho ou vários desenhos para ver se consegue perceber?
Não, claro que não preciso que faça desenhos, respondi. Sei bem que o proto-eu (com os seus sentimentos primordiais) e o eu nuclear são o eu material, enquanto o eu autobiográfico constitui o eu social e o eu espiritual porque abrange todos os aspectos específicos e característicos de um indivíduo; e, neste sentido, a consciência humana normal é um processo mental onde operam todos estes níveis do eu…Ainda não tinha acabado e já estava a ouvi-la, interrompendo-me de novo. Presunção e água benta não lhe faltam! Fala de consciência e de mente como se soubesse o que está a dizer (que enfado!); a mente, fixe de uma vez, começou antes do eu e a marcha do seu progresso e desenvolvimento não terminou com o aparecimento do eu; veja se estuda um pouco a evolução dos mamíferos e sobretudo dos primatas (gosto de o sentir uma espécie de primata inteligente) para perceber o desenvolvimento da mente, da memória, do raciocínio e dos processos de desenvolvimento do eu.
Rendo-me à sua sabedoria mas não gosto da sua agressividade, respondi-lhe sem acinte. Mesmo assim, para me explicar o que se quer dizer, atrevo-me a deixar-lhe uma afirmação de alguém que também se preocupa com estas coisas do cérebro: “Todas as mudanças só podem ocorrer se nos lembrarmos e nutrirmos estas lembranças. As mudanças só podem ocorrer se permitirmos a reposição de padrões de hábito neurológicos”. Claro que terei todo o gosto em lhe explicar, respondeu-me sorrindo e sem gaguejar, o significado desta afirmação, se prometer que, nesse dia, beberemos vinho novo ao som de um alaúde, que nos riremos de pequenas coisas sem importância e que o faremos com gargalhadas que desçam até um jardim florido. Admirado? Eu não lhe tinha já dito, mais que uma vez (bastas vezes), que não sabe e nem seria capaz de perceber o que é a manifestação de um meu sentimento primordial?
Fiquei sem fala…
Mas guardo, só comigo, o claro e enigmático rosto dela!
Mas guardo, só comigo, o claro e enigmático rosto dela!
Que profundas e belíssimas elocubrações!
ResponderEliminarSurpreende-me sempre, caro Amigo Luis Silveira.
Muito obrigado.