O cheiro a café não existe
Espraia-se o silêncio no espaço da manhã e um café quente vem mesmo a calhar, disse de mim para comigo, embrulhado numa interrogação desafiadora. Se o cérebro não nos engana porque nós somos cérebro e mente (que ele próprio cria), será que ele se engana a si próprio? Nem pense que, neste amanhecer de domingo, lhe vou responder a essa questão, ouvi a voz da omnipresente fada numa leve aragem; quem faz as perguntas sou eu e tenho já uma questão interessante para si: sabe que este cheirinho do seu café não existe? Não existe e diz que é um cheirinho a café?- Perguntei. Claro que não existe porque nada existe fora de nós, respondeu espreguiçando-se levemente; sabia que nem sequer existe a luz que vemos quando abrimos os olhos? Fora de nós, só existe matéria e energia. O cérebro capta a informação através dos órgãos dos sentidos e transforma-a em percepções conscientes: em cheiro, em sabor, em gosto, em luz, em visão…Quem cheira, gosta, vê, ouve, toca e sente é sempre o cérebro.
Não brinque comigo, disse eu. Está a sugerir que quando, agora, eu toco nesta chávena de café, não é a minha mão que toca a chávena mas sim o meu cérebro? Exactamente, respondeu. Foi isso mesmo que eu quis dizer. Sabe, por exemplo, que há pessoas que perderam um braço num acidente e que mesmo assim, o continuam a sentir porque a parte do cérebro que processa as sensações tácteis se mantém intacta? Aí tem uma prova irrefutável de que é o cérebro que toca e não a mão. Mas num ponto estou de acordo consigo. É ainda um mistério por resolver, o facto de ser o cérebro a tocar nessa chávena (podia ter chávenas com um design mais agradável, não acha?) e, por exemplo, o meu caro enfadado (gostou da expressão "o meu caro enfadado"?) sentir que é a sua mão que toca na chávena. É mesmo um mistério até para mim, que sou fada e que vendo sementes de planeta.
Mais uma manhã de domingo estragada, pensei comigo. Mas continuei a conversa dizendo-lhe que, a ser assim, a realidade não existe. Que lhe interessa a si a realidade?- Invectivou-me. Temo que a sua tendência para os conceitos filosóficos ainda um dia o vá deixar ficar mal. O que interessa, é que o cérebro percebe o que sentimos e o que captamos disso a que vulgarmente se chama de realidade. Repito-lhe (estou tentada a chamar-lhe cabeça dura, mas não o vou fazer) que, fora de nós, só existe matéria e energia. O cérebro converte-as em potenciais de acção e depois transforma-as em percepções: estas percepções são a forma de entender o mundo que gira à nossa volta. Pensa que não entendi que a sua expressão “um café quente vem mesmo a calhar” foi a forma que o seu cérebro inventou para provocar uma conversa comigo? Pensa que eu não sei que vivo permanentemente nos seus circuitos cerebrais que dão origem aos seus processos mentais, à sua consciência e à sua autoconsciência? Veja se é um pouquinho mais expedito e inteligente e acompanhe o seu café com um bolo de massa finta.Vai fazer-lhe bem aos seus neurónios estafados, garanto-lhe. E, depois, espere mais umas horas e vai ver sentir o Sol a alegrar a minha franja de cabelo nesta manhã de domingo... Vá lá, deixe de estar amuado, sabe bem que eu gosto de si.
Convencida, vaidosa e domingueira, pensei eu!
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