O amanhecer de uma súbita alegria
Não sei o que fazer para lhe tirar a ideia de que não podemos conversar amigavelmente, sussurrou-me, ao de leve e na aragem do vento da meia-noite, a minha fada preferida. Acredite que não me perturba a sua lógica, nem sequer qualquer filamento do enredo dos nossos diálogos por mais difíceis que eles sejam. Pasmo com a sua ousadia, respondi-lhe. Depois de, sistematicamente, me agredir e contrariar tudo o que digo, apresenta-se agora como uma espécie de água mel que nasce no peito onde o seu coração mora; mas gosto da sua sinceridade e desta sua forma de aconchego. Reconheço.
Eu sempre soube que me entendia, continuou ela. Talvez pudéssemos fazer uma pausa no tipo de diálogos que vimos tendo sobre o cérebro. Recordo-me de ter falado longas horas com Shakespeare; eu adorava aquelas longas conversas (às vezes um pouco azedas também), naquela cozinha pequenina da casa dele onde esteve no ano passado (bem que tentei comunicar consigo abrindo o postigo pequeno, nesse dia às onze horas da manhã, recorda-se?); Shakespeare tinha a capacidade para permanecer nas incertezas, nos mistérios, nas dúvidas, sem nenhum alcance irritante dos factos e da razão. Por mim, disse eu nada calmo porque senti, de novo, aquele postigo a abrir-se, nada tenho a opor à sua proposta. De toda a maneira, quero que saiba que, quinzenalmente, mando analisar por um poeta as minúsculas vírgulas do meu cérebro; porque estou convencido que a minha identidade é a coisa mais íntima que sinto, embora saiba que ela emerge de um impulso de electricidade celular.
Pois sim, isso é lá consigo, interrompeu-me com um leve sorriso. Mas não contraria o que eu disse sobre a capacidade de Shakespeare, no sentido em que a coisa mais misteriosa acerca do cérebro humano é que, à medida que melhor o conhecemos, mais profundo se revela o nosso mistério (o seu e o meu, claro); mas já pensou, por exemplo, que só com a polpa dos dedos se colhe a demora para nos vermos melhor? E, sendo assim, agora que revejo de uma vez todos os nossos diálogos, fico com a ideia de que eles apenas servem como moldura para fazer um poema em quadras íntimas. Na vida o importante não é ser poeta, é ser poema… Há grandeza nessa sua visão da vida, interrompi. De facto, a nossa liberdade está inscrita em nós, a vida está repleta de uma enormíssima liberdade de movimentos; e estes movimentos são definidos por uma plasticidade que desafia qualquer determinismo.
Com um ar sério que eu não conhecia, afirmou ela sem pestanejar, que eu não podia deixar de fora a alegria de sentimentos vividos, a tristeza de desejos não concretizados, a vontade de um futuro presente todos os dias. Enquanto ela se despedia sem “adeuses” e sussurrando que a vida não tem arredores, senti o amanhecer de uma súbita alegria.
A minha fada é uma delícia, confirmei!
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