Ali não há ali

Coisa estranha, pensei de mim para mim. Será que é mesmo verdade que uma sucessão continuada de estudos demonstrou que qualquer experiência dura apenas cerca de dez segundos, na memória de curto prazo, no cérebro e que nem tempo dá para pensar o que ali acontece? Será que, depois desses dez segundos, o cérebro esgota a sua capacidade para o tempo presente e a consciência tem de começar de novo? Coisa estranha, digo eu, ciciou a minha fada preferida. Estou absolutamente surpreendida por verificar que as suas questões são pertinentes. Fez bem em ter seguido o meu conselho para não dormir à torreira do sol; evitou que os seus miolos aquecessem e aí tem o resultado: conseguiu formular duas excelentes questões. Por precaução, no entanto, vou ficar alerta porque pode ser exactamente o contrário e as duas questões serem o resíduo dos seus miolos tostados. Não leve a mal que eu pense assim porque, em rigor, deveria ter formulado uma terceira questão, ou seja: será que o Eu é uma procissão infindável de momentos desagregados?
Irritado com a sua intempestiva interrupção, respondi-lhe sem hesitar. Aceito que a sua questão complete as duas questões que eu formulei; mas quero dizer-lhe, relativamente à sua questão, que bem mais desconcertante é saber que não existe um único local no cérebro onde esses momentos desintegrados se reconciliem; dito de outra forma, ali não há ali. Concorda comigo? Concordo, disse com ar displicente. Mas não se envaideça porque precisa ainda de estudar muito. A sua expressão “ali não há ali” é interessante porque se aplica ao córtex e significa que, por exemplo e neste momento, na sua cabeça acontece uma espécie de parlamento barulhento, onde as suas células (um pouco debilitadas por ausência de legumes frescos) debatem quais as suas sensações e quais os seus sentimentos que, relativamente a mim que sou a sua razão de ser, se devem tornar conscientes.
Se é com diz, interrompi, então a mente não é um lugar é um processo. Mas porquê esse debate sobre sensações e sentimentos relativamente a si? Quem lhe diz que eu não sinto que acontecem dois debates ao mesmo tempo: um no hemisfério direito e outro no hemisfério esquerdo do cérebro? Eu sei há muito tempo, disse a fada trauteando as palavras, da sua mente dividida e da sua ignorância sobre o que significa corpo caloso mas, sem nenhuma acerba ironia, lhe digo que o seu Eu é variado e nómada errante. Só quando der rédea solta aos seus desejos mais profundos será, pela primeira vez na vida, igual a si próprio. Não tenha medo de dar rédea solta ao seu Eu e, assim, ser igual a si próprio; eu estarei sempre por perto e vigilante, não se esqueça.
Essa agora!- Desabafei atabalhoadamente. Quer que eu acredite que apenas poderei ser íntimo de mim próprio se tiver a si por perto? Claro. E não se esqueça que, mesmo os seus diálogos comigo que sou fada, se esgotam ao fim de dez segundos (devido à sua raquítica memória curta, óbvio), retorquiu enfadada.
Raquítica memória curta? Será que ouvi bem? Fraquezas de fada, quero crer!

Comentários

Mensagens populares