A madalena de Proust

Poderá um romance demonstrar que a realidade é em última análise, espiritual e não física? Interroguei-me quando revisitei Bergson a propósito da força e do poder da intuição. Essa foi a questão que levou Proust a procurar a resposta na forma de uma madalena que é um bolo amanteigado, com aroma de raspa de limão e em forma de concha, respondeu-me, a minha regressada fada com a sua linda franja de cabelo em desalinho. Mas se um bolo é um bocado de matéria, como é que pode revelar a estrutura do espírito, ou dito de outra maneira, como é que toda uma mente se revela a partir de um bolo?- Questionei-a. Meu caro, respondeu-me, precisa de entender que uma pergunta não interroga, uma pergunta diz a resposta. A sua maneira de fazer perguntas ainda precisa de ser afinada. Se quer que lhe diga, o que, neste momento, afoga o meu olhar e a minha atenção, é a densidade deste céu de uma noite de Agosto; "estrelas inumeráveis (como dizia Vergílio Ferreira), lantejolas de irrisão - irrisório manto para a nudez." Percebi, disse eu. Não sabe responder e escuda-se neste ar nocturno matizado de fragilidade e de frio leve que flutuam em filigranas de beleza. A sua última frase, interrompeu-me afadigada, esmaga-me de sentimentos contraditórios. Recordo os meus tempos de jovem menina em que a minha preocupação principal era a inteligibilidade e a perfeição da vida, ao devorar e anotar livros numa esplanada à beira mar; e sinto que o que me seduz, hoje que me sinto mais comigo, é um obscuro desejo de que o mistério da vida habite e permaneça no meu presente. Sinto-me bem perto de mim e, por isso, para responder à sua questão, opto por lhe transcrever o início da Busca do Tempo Perdido de Proust:
"Mas no preciso momento em que bebo um gole de chá e as migalhas de bolo me tocaram no céu da boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a acontecer em mim. Fora invadido por um prazer delicioso, um prazer isolado, sem a noção da sua causa. Tornara-me imediatamente indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, do mesmo modo que o amor opera, enchendo-me de uma essência preciosa; ou, antes, tal essência não estava em mim, era eu mesmo. Deixara de me sentir medíocre, contingente, mortal. Donde poderia ter vindo aquela poderosa alegria? Senti-a ligada ao gosto do chá e do bolo, mas ultrapassava-o infinitamente, não devia ser da mesma natureza. Donde vinha? Que significava? Onde agarrá-la?"
A poderosa alegria estava nele próprio, é óbvio, observei. Claro que sim. - Respondeu. Mas não se esqueça que, nesta passagem, a essência da arte de Proust estava no vapor de uma límpida chávena de chá e o bolo foi apenas um pretexto para dizer que nas migalhas de açúcar, farinha e manteiga, ele se explorava a si próprio. Se assim é (e não duvido se o diz), insisti, então ele pressentiu muito sobre a estrutura do nosso cérebro; talvez, sem risco de engano mas com algum pedantismo à mistura, pudéssemos dizer que o ano de 1911 foi o ano da madalena.
Esboçando um gesto de carinho, murmurou:
vá dormir e descanse, é tempo e eu estarei sempre por perto; foi atacado pelo ar limpo e translúcido da minha criatividade lúcida.
Que forma estranha ela tem de revelar a forma mítica que ordena a minha vida...
Pensei, ainda encantado!

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