A areia na salada

Se se concretizar a sua ideia de passear comigo na praia e de parar para almoçarmos numa esplanada à beira mar, ficarei encantada. Sabe porquê?- Perguntou-me, com a franja a dar a dar, a minha fada madrinha. Creio que sei, respondi. A água, a areia, o ar do mar, o azul e a linha larga do horizonte fazem parte integrante do seu código genético e são a base do conceito de liberdade de vida que escolheu na sua juventude de menina perfeita e sábia. Ai a sua tendência para o palavreado tagarela e filosófico!- Interrompeu-me sem cerimónia. Seja prático e diga de forma simples que eu ficarei encantada porque também sei apreciar pastéis de bacalhau, saladas bem temperadas, um bom pedaço de queijo e perco-me com o sabor e como odor de um bom vinho tinto (o vinho tinto é não só uma bebida mas também é um alimento com um grande valor energético e rico em alimentos orgânicos; já ouviu falar em taninos?). Será que ainda não entendeu que é a língua que preside às refeições? É a língua preside às refeições? Como é que é?- Questionei-a espantado. A língua preside às refeições, sim; mas todos os sentidos são sempre convidados para a cozinha, disse ela com ar deliciado. A língua (não esqueça que ela, sendo o suporte sensorial das células do gosto, também é um músculo) é a primeira a tocar na comida como uma rainha cega: aprecia a textura do alimento, distingue o sólido e o líquido, o fibroso e o viscoso; e em colaboração com os dentes potencia o granuloso e o arenoso. Lamento contrariá-la, arrisquei dizer, mas a língua não é apenas isso. Penso até que deve ser entendida como sendo o símbolo afectivo do ser humano. É ou não verdade que ela também serve para falar e é ou não verdade que a língua não se mantém inactiva na relação afectiva e sexual? Não me contraria nada, meu caro, apenas interrompeu o meu pensamento, expondo um velho costume dos tagarelas (como é o seu caso), respondeu. Aproveito para lhe dizer que a língua dos tagarelas é a única língua que precisa de ser regada regularmente porque os tagarelas cansam a língua e ficam com a boca seca. Mas terá razão, se insistir em expressar-se como os psicanalistas (com quem tem, ouvi dizer, contenciosos antigos), reconheço; nesse caso, as actividades da língua podem ser pensadas sobre três perspectivas: alimentação, fala e sexo. Há até quem diga que há três movimentos desconhecidos na língua dos humanos; um dia eu digo-lhe quais são e explico-lhe os seus significados, prometo. Agora estou mais interessada em saber se decide (ou não) convidar-me para passear consigo na praia e para almoçarmos numa esplanada junto ao mar. Claro que convido, disparei apressadamente. E até já conheço a sua ementa preferida para o almoço; apenas sugiro que também experimentemos um risoto de parmesão. Excelente escolha, observou ela. Apenas tem que ter cuidado e alertar para a preparação esmerada da refeição; porque se é verdade que não há maior doçura no palato que a suavidade arenosa e granulada de um risoto de parmesão, o mesmo não pode dizer-se se houver areia na salada de legumes que também deverá escolher. Aborrecido com a sua petulância e humor corrosivo, resolvi invectivá-la com alguma rispidez: parece-me que, por ser fada, tem mais olhos que barriga. Qual a minha a surpresa quando a ouvi dizer na voz do vento, rindo a bandeiras despregadas e trauteando uma velha canção judia: há momentos de graça no imaginário visual, onde os desejos se confundem e a alma se torna cúmplice da carne; só nesses momentos os beijos e os abraços fazem sentido.
Não sei bem porquê, mas tenho que ter cuidado com a areia na salada.
Pensei eu e mim. Ao desafio!

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