Cajal estava certo

A nossa lembrança daquilo que nos aconteceu no passado é imperfeita porque a memória é desonesta. A memória é desonesta? Sabe qual o caminho que vai trilhar? - Interrogou-me com os olhos muito abertos a minha fada favorita. Claro que a memória é desonesta, disse eu. E, quem primeiro se apercebeu que a memória é desonesta, foi Freud e por acaso. Ou seja, durante algumas sessões de psicoterapia Freud foi confrontado com relatos de mulheres que atribuíam as suas histerias nervosas a abusos sexuais durante a infância. Sim e depois?- Ouvi a fada a interrogar-me com uma franja de cabelo em desalinho.
Depois, continuei eu, dando a volta ao sentido do seu "depois", aconteceu que Freud se encontrou perante dois cenários possíveis e muito preocupantes que teria de esclarecer: ou as mulheres estavam a mentir ou na burguesia de Viena o assédio sexual era muito comum. Por força das circunstâncias que soube estudar e interpretar, sentiu-se obrigado a aceitar que a sua prática clínica não poderia descobrir o que de facto teria acontecido; porque as mulheres quando se lembravam dos abusos sexuais também criavam memórias sinceras e, assim sendo, mesmo que os seus relatos de abusos fossem efabulações, a verdade é que tecnicamente não estavam a mentir porque acreditavam no que diziam.
Que grande novidade me dá! Bocejou ela. Isso é a ficção da memória ou, se quiser, é a forma como o acto de recordar as coisas pode alterar a memória porque o cérebro pretende sempre organizar as recordações para parecerem sempre verdadeiras; e também todos sabemos que os cientistas durante muito tempo entenderam que que as memórias estavam guardadas no cérebro como se estivessem numa biblioteca. Era preciso ter ido buscar Freud para dizer uma coisa tão simples? - Perguntou, sem animosidade mas com um leve sorriso provocador, essa fada atenta e sábia.
Creio, respondi um pouco agastado, ser necessário regressar a Freud com o objectivo de dizer que foi na sua prática (e na ausência de resultados) que se inspiraram outros cientistas para estudarem e se confrontarem com o fantasma da mentira da memória. E, um facto importante foi descoberto por Santiago Ramon y Cajal (Nobel da Medicina em 1906): toda a memória começa numa ligação modificada entre dois neurónios. Por acaso sabe como é que Cajal chegou a estar muito perto de formular esta afirmação?
Meu caro, claro que sei. - Disse ela com uma sonora gargalhada à mistura. O processo científico desenvolvido pelo Santiago Ramon (com quem discuti algumas questões sérias e interessantes, o que não acontece consigo, pelo menos por enquanto), era muito embrionário e até algo fantasioso no sentido em que observava, no microscópio, camadas finas do cérebro e dava asas à sua extraordinária imaginação fértil (o que não é o seu caso, diga-se em abono da verdade), a partir dos conhecimentos científicos da sua época. Naquele tempo, pensava-se que os neurónios estavam ligados no cérebro como fios eléctricos num circuito; a grande novidade criativa do Santiago Ramon é que ele entendia que sendo cada neurónio uma ilha limitada por uma membrana, era nos espaços vazios entre os neurónios – aquilo a que hoje se chama de sinapses – que residiam os segredos da comunicação que servia para formar e colorir as memórias e para trocar as informações mais diversas.
Então Santiago Cajal, aventurei-me eu a dizer, relevando as suas provocações, estava certo. Porque hoje sabemos que quando as células ficam entrelaçadas se faz uma memória; sabemos que o processo de fabricação de memórias precisa de novas proteínas, sabemos que uma lembrança é uma construção celular e sabemos que o tempo é incorporado na arquitectura do cérebro.
Este saiu-me melhor que a encomenda, ouvi a fada sussurrar baixinho.
Este?! Este sou eu?
Que raiva!

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