Via Graça (4)

Podemos deixar de lado a questão de o mundo ser ou não um lugar aromático, para podermos formular uma questão diferente: será que podemos pensar com o nariz? Aparentemente trata-se de uma pergunta cuja resposta pode inclinar-se para a expressão “se calhar sim, mas não me lembro de alguma vez ter pensado com o nariz”. Para acabar com o assunto podia recorrer a uma verdade consolidada que afirma que o nariz cresce com a mentira e se cresce, é porque pensamos com ele, mas não. Prefiro o caminho seguro do princípio da utilidade biológica da percepção sensorial e da formação de imagens no desenvolvimento cognitivo, plasmado numa experiência única e subjectiva que pode acontecer entre dois seres escolhidos.
Diz-nos essa experiência que a fragância de um perfume muito suave desde que aliada a um relógio rectangular com mostrador de números romanos e pulseira creme/acastanhada a rodar em mãos finas e nervosas, permite que um desses seres (ou os dois!) olhe para dentro de si mesmo e encontre uma consciência em permanente efervescência. Em efervescência porque os pensamentos correm num caudal turbulento e anunciam formas novas de olhar e pensar a vida; o recurso imediato é procurar ou dizer qualquer coisa que sustenha um turbilhão de pensamentos fragmentados e desconexos, desencadeado por perguntas solipsistas: será possível, o que é que está acontecer, o que é que eu quero que aconteça?
Através da aliança estratégica de um perfume que aproxima, de um relógio que serve de amuleto e de mãos inquietas que falam, se prova que emergimos das nossas próprias e únicas sensações do mundo através da percepção sensorial (neste caso o nariz teve um papel importante); e se prova que não só somos nós que contamos a nós próprios as nossas experiências quanto inventamos estratégias para prolongar os momentos que transbordam dessas impressões temporárias e desses sentimentos incipientes.
A neurociência moderna confirma que assim é quando nos diz que qualquer experiência dura cerca de dez segundos na memória de curto prazo e que o cérebro esgota nestes dez segundos a sua capacidade para o tempo presente…Quando tudo se reinicia, começamos a ter consciência de um parlamento de células que existem na nossa cabeça, onde se discute acaloradamente quais as sensações e quais os sentimentos que devem tornar-se conscientes.
O que aquela experiência nos ensina e o que a ciência corrobora é que uma espécie de coligação de células de perfume, relógio e mãos, consegue apresentar e ganhar uma moção de confiança (temporária) nesse nosso parlamento de células (algumas delas, baratas tontas, não pensam porque não sabem ser “senhoras do seu nariz” e não têm mucosas pituitárias apuradas), desde que os nossos olhos não parem de explorar o ambiente para descortinar ameaças ou sorrisos cúmplices.
Mas porque a experiência subjectiva não é reduzível nem deve ser extrapolada, o melhor é experimentar…
E, se resultar, é verdade que podemos pensar com o nariz!

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