Via Graça (3)

(…)
Regressou a minha liberdade para escrever, ainda bem.
Dizia eu que fiquei a saber que na vida “nada há mais difícil e exigente que ser-se livre”; fui percebendo a verdade intrínseca desta afirmação a partir da minha experiencia de vida pessoal e por duas razões. Uma, pela dificuldade de fazer emergir as nossas sensações quando nos adormecem compromissos, bocados e fragmentos de poder e a outra, pela incapacidade de perceber a realidade que nos cerca mesmo quando, em jeito de gratuitidade, a vida nos oferece alguém que está sempre perto (muito perto) de nós e que é carinhosamente inteligente e disponível.
Aquela dificuldade e aquela incapacidade impedem-nos de sentir o rosto e os olhos que nos olham e nos interrogam, num Al-Foz fluvial (por exemplo), como uma luz de silêncio a passar debaixo de água; e, assim sendo, deixamos de saber refazer o mundo porque não percebemos que o nosso Eu pode transformar sensações efémeras (mas escolhidas) num “momento de ser”. Para tornar as coisas mais complicadas a neurociência diz-nos, nos dias de hoje, que o que sentimos nunca está limitado às nossas sensações reais: estas são sempre incompletas e exigem sempre mais uma pitada de subjectividade e de proximidade corporal que as possa unificar; é desta subjectividade e desta proximidade corporal que se faz aquilo que para sempre permanece.
Sei que sempre que evocamos o passado, o nosso passado, os ramos da árvore da reminiscência ficam maleáveis de novo e os sentimentos viajam entre a memória e o esquecimento em direcção ao futuro, não tolerando despedidas de qualquer espécie.
Estranho o que está acontecer…Estou a escrever demasiado depressa e paradoxalmente mantenho-me atento à forma como a escrita que se escreve a si própria, cortando as palavras para o texto fique pensante, para que o significado possa ser contextualizado no tempo e para que nenhuma palavra exista sozinha: tratar-se-á do facto de estar a relatar, de memória, pequenos milagres quotidianos que à distância mais se assemelham a fósforos riscados ao vento?
Creio que não. Inclino-me mais para a ideia de que, no eco do tempo, eu esteja a seguir a mestria e o sussurro das palavras soltas e prenhes de sentido de um ser humano livre, sensível e verdadeiro que um dia soube dizer de mansinho: o paladar da maior parte dos sabores é o olfacto.
Será que o mundo é um lugar aromático?

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