Via Graça (2)
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Porém, lembro-me perfeitamente que senti que seria impossível, a partir desse momento mágico, contemporizar com a mediocridade (reconheço que nem sempre fui consequente com esse sentimento) e que era imperativo olhar a vida de forma diferente, confinada a um universo holístico, indeterminista e exuberante de criatividade e onde há coisas que não podem ser ditas mas podem ser mostradas em forma humana como, por exemplo, a sensibilidade, a beleza, a graciosidade, o riso feliz, as mãos finas, a resposta fácil e a inteligência emocional sagaz e acutilante. Também fiquei a saber que na vida "nada há mais difícil e exigente que ser-se livre".
Mas o que é vida?
Dizia Karl Popper que uma nuvem é “altamente irregular, desordenada e mais ou menos imprevisível” e, neste sentido, é a nuvem que melhor define a vida. Como sabemos, as nuvens que são engendradas e transportadas por um número infinito de correntes de ar, têm vontades que não conseguimos entender: alteram-se, agitam-se, tropeçam, zangam-se, esculpem estátuas, brincam com o sol e a chuva, o frio e o calor e modificam-se com os tempos, os sabores, os saberes e os vagares da criatividade à solta.
Dizia ainda K. Popper (recordemos a teoria dos três mundos e a incessante procura de um mundo melhor) que a vida, tendo todas as características de uma nuvem, cada vez se parece menos com um relógio mesmo que de alta precisão; afirmação que a ciência continua a confirmar, à medida que vai descobrindo, por exemplo, como o ADN constrói proteínas e como as proteínas nos constroem a nós: o caos está em todo o lado e nós estamos misteriosamente livres para ser poemas ou obras de arte; cada um é livre para viver como decide, de acordo com a sua natureza e de acordo com a dádiva de uma individualidade infinita que a evolução nos ofereceu.
Mas o nosso universo está cheio de contingências e, por vezes, não conseguimos nem descortinar nem decidir o caminho único: é, nestas alturas, que se afigura decisivo procurar a estrela inscrita em nós porque não somos totalmente livres nem somos totalmente determinados. No entanto, a indefinição e os limites da variação de humor e de amor de uma estrela (afirmava, genialmente, Alberto Caeiro (heterónimo da Fernando Pessoa) que “o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso”) são muito mais variados e complexos do que podemos imaginar: ela é sempre especial e imprevisível, mesmo quando se esconde, demasiado tempo, por detrás da nuvem que escolheu para se divertir e sonhar.
Hoje sinto-me despojado da minha liberdade quando escrevo, porque será?
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