Não quero que nada perturbe a Via Graça

Mas quero dizer que sim, o mundo é um lugar aromático…E todas as memórias têm cheiros.
Tenho tentado preservar os espaços da minha infância e os pormenores tendem a esbater-se sem que consiga recuperá-los: tristemente; é como se aos poucos me desvanecesse com eles.
Sei que a cidade onde nasci deixou de existir e teimo em regressar e em dizer que quando a vida inscrever o meu fim, quero estar onde tudo começa; também sei que há locais onde não podemos regressar senão dentro de nós…São as cidades invisíveis que só se podem contar e como os sonhos, não se explicam.
Mas tudo o que permanece na minha memória com cor, forma, sons e rostos, sei que tem cheiro…Tenho todos os itinerários dos cheiros da minha infância gravados de forma indelével.
Podia descreve-los um por um!
Que o vento das árvores do quintal cheirava a maresia e pedacinhos de araucárias secas que ficavam pelo chão e se misturavam com o cacimbo da noite; que tinha sons de latidos de cães e de aves nocturnas.
Que as árvores se enchiam do brilho de olhos nocturnos …Que o meu pai me deixava tocar os morcegos que saíam em debandada ao cair da tarde do forro do telhado e me deixava pegar ao colo o macaco que vivia preso numa corrente de cão, na papaeira ao lado da garagem.
Que as folhas da papaeira, ao fim da tarde, escorriam leite branco que manchava a roupa e dava direito a um ralhete da minha mãe enquanto nos dava banho e contava as nódoas negras e crostas das feridas nos joelhos…E me dizia que era uma “maria rapaz” que quando crescesse tinha que vir para um colégio interno na metrópole, sob pena de me tornar uma selvagem se o meu pai teimasse em fazer de mim uma “ menina de África".
Que a comida dos criados, a pele, a roupa e o colo deles cheirava a fumo da fogueira…As mãos eram grandes e ásperas mas pegavam-nos com o cuidado de quem embala pequenos deuses…E mesmo assim nunca conseguiram conquistar a confiança da minha mãe que lhes tratava as feridas e as doenças mas que continuava a ter medo deles e das facas e catanas que guardavam nos anexos para desmanchar a caça e curtir as peles que o meu pai trazia com os amigos, no fim do tempo das chuvas, num Land Rover que cheirava a sangue e óleo e era lavado com creolina em cada regresso.
Que, ao sábado à tarde, cheiravam a sabão e a ferro de passar as túnicas brancas e os cofiós antes de partirem para a folga semanal; e voltavam com cheiro a incenso das mesquitas onde iam orar… E também quando pela noite se ouviam as canções deles ao fundo do quintal, o cheiro acre e doce da aguardente de caju atraía mosquitos e o mau humor da minha mãe, que nos enchia de resoquina e abria os mosquiteiros sobre a cama para afastar o paludismo. 
E ainda quando adormecíamos com o cheiro da cera vermelha dos soalhos e os sussurros das conversas na varanda entre o meu pai e alguns casais amigos que apareciam depois do jantar, para o serão.
Recordo que o meu nariz pelava todo o verão pelo excesso de praia e sol e as camadas de nívea não atenuavam o ardor das costas; mas os mimos das mãos da minha mãe eram o melhor bálsamo antes de adormecermos…E ela cheirava a sabonete e “Pond´s” e lia histórias da condessa de Ségur.
E os livros cheiravam às mãos dela!
(Um texto autónomo que é um comentário à "Via Graça (3)")
Margarida Corte-Real

Comentários

Mensagens populares