Maria Lua no Songo

É noite, António já jantara e acaba de arbitrar um jogo de futebol de cinco, entre uma equipa de civis e outra de Guardas Rurais. Entre o campo de futebol e a rua há um declive em anfiteatro, e o furriel decide sentar-se na berma da estrada para assistir ao próximo jogo da equipa da sua Companhia contra outra de jovens civis. O jogo está quente, não violento, mas viril, os militares estão a vencer por um a zero e António está concentrado no jogo, com olhos de árbitro e alheado a tudo à sua volta, é-lhe quase impossível desligar-se desta função quando vê um jogo de futebol de cinco.
Uns dedos finos e aveludados tapam-lhe os olhos! António estremece com a sensação agradável que o toque de dedos femininos lhe provoca e desliga-se completamente do jogo, levanta as suas mãos e agarra nas que lhe tapam a visão! Nesta altura o seu coração dispara, e António sussurra admirado:
– Maria Lua?! – E, voltando-se, abre a boca de espanto – És mesmo tu!
– Maria Lua com a voz muito baixa diz:
– Não faças essa cara de espanto e fala baixo, se não queres que toda a gente olhe para nós.
Beijam-se num gesto rápido e, mais uma vez, é ela que toma a iniciativa e diz:
– Vou levantar-me e dirigir-me para um sítio onde podemos estar à vontade! Ficas aqui, vê para onde me dirijo e vai lá ter sem que ninguém te veja.
António segue-a com o olhar e vê-a afastar-se com um passo firme mas leve e gracioso. Maria Lua veste umas calças de ganga justas que lhe realçam as pernas e dirige-se para a Igreja o que sobressalta António: quererá ela que nos encontremos na Igreja?! Como terá conseguido a chave?! Mas imediatamente antes das escadas, ela vira à esquerda e entra no capim desaparecendo.
António suspira aliviado, levanta-se e dirige-se no sentido do quartel, acelera o passo, dá a volta à vila e aproxima-se da Igreja pelo lado oposto. Para, certifica-se de que ninguém o está a seguir ou a ver e como não tenha visto nada que o perturbe, entra no capim e vai ao encontro de Maria Lua que, ao vê-lo, lhe diz:
– Demoraste tanto que cheguei a pensar que não vinhas!
– Fui dar a volta à vila para ter a certeza de que ninguém me via.
– Assim é que é. Homem prevenido vale por dois.
Dito isto, abraçam-se e as suas bocas ávidas beijam-se, ao mesmo tempo que se vão libertando das roupas, amam-se num frenesim desesperado e voltam a amar-se até que, exaustos e abraçados, se deixam ficar deitados no capim que lhes faz de cama, apenas cobertos pelas estrelas do firmamento desta linda noite africana.
Os dois jovens na vertigem da paixão perdem a noção das horas e já de madrugada António acorda; Maria Lua está bem colada a ele mas mesmo assim ele sente um friozinho, então, muito baixinho balbucia:
– Tens frio? – Na expectativa de que também ela esteja acordada.
– Sim, agora arrefeceu um pouco.
– Eu vou ao quartel buscar um cobertor. – Diz António levantando-se.
– Não. Não vás que eu tenho uma manta ali na égua!
Ela ergue-se e encaminha-se para o animal que está a uns metros deles amarrada a um pequeno arbusto, enquanto António fica sentado a vê-la movimentar-se sempre com aquela postura desenvolta, firme mas leve e delicada como uma pena; o seu corpo nu, banhado pela luz da Lua, é tão perfeito, tão harmonioso que António dá consigo a pensar:
 - Parece uma obra-prima acabada de ser esculpida, num bloco de bronze, pelas mãos de Miguel Ângelo. Tenho que agradecer à natureza, ou melhor, a Deus, ou a ambos, por esta noite fantástica.
Maria Lua regressa e António com os olhos esbugalhados pestaneja várias vezes para se certificar de que está mesmo acordado e que o que vê é real e não um sonho. Ela aninha-se bem junto a ele e ambos se cobrem com a manta e depois de se amaram novamente, António pergunta-lhe:
– Onde é que estudaste?
– Como sabes que estudei se nunca falámos disso?
– Não é necessário, basta falar contigo para se perceber que estudaste e que não foi só até à quarta classe.
– A minha mãe quando conheceu o meu pai, trabalhava já em casa dos pais da minha madrinha. Estes já faleceram mas a minha mãe continuou a trabalhar para a filha. E quer a mãe quer a filha sempre me aceitaram e quiseram que eu estudasse. Ah! A propósito, os pais da minha madrinha tinham uma fazenda junto à foz do rio Kwanza e no caminho, mais ou menos a 40Km a Sul de Luanda, há um miradouro num local muito bonito onde a erosão provocada pelas escorrências das fortíssimas chuvadas tropicais, gera um invulgaríssimo fenómeno geológico, resultando numa escultura de fendas e cores únicas, oferecendo um belíssimo espetáculo a quem olha a partir do alto do miradouro, sugerindo tratar-se de rochas lunares. Aí parávamos muitas vezes e um dia a minha madrinha num devaneio dos seus pensamentos – segundo ela – olhou para mim e disse: “ bonita, serena e misteriosa como a Lua”…
– Não digas mais – interrompe António – foi pela beleza do lugar que a tua madrinha te pôs o nome de Lua?
– É verdade. Mas o que é que isto interessa?
– Interessa-me saber tudo a teu respeito, e a avaliar pela tua beleza, tenho a certeza de que se trata de um local muito bonito e que vou querer conhecer.
Maria Lua agradece-lhe, beija-o e depois continua:
– A minha madrinha é quarenta anos mais velha do que eu, é licenciada em Letras, sabe falar corretamente Francês e toca piano. Têm uma formação tradicionalista de primeiríssima água! Como não constituiu família, teve sempre muito tempo livre e dedicou muito desse tempo a mim. Deu-me explicações em casa e quis que eu soubesse falar Francês para depois conversarmos as duas. “A única maneira de não esquecermos uma língua, é falando-a e lendo-a” dizia-me ela. Em resumo, fiz o décimo ano no Liceu Salvador Correia em Luanda, sei falar Francês e até toco umas coisas ao piano. Como vez sou uma menina muito prendada.
– Mas a menina sabe fazer outras coisas também. Ah, e muito bem…
Ela balbucia qualquer coisa mas ele puxa-a para si e com os lábios impede-a de falar e beijam-se demoradamente; porém, António insiste:
 – Ainda não me disseste o que fazes?
– Trabalho… Numa Associação sem fins lucrativos.
– Sim, mas em quê? – Volta a insistir António.
– Bem… como é que hei-de dizer… Procuro, recolho e distribuo informação. É um trabalho bonito e enriquecedor porque é feito com pessoas e para as pessoas. Estás satisfeito com o interrogatório? Então agora é a tua vez de me dizeres quem és!
Parece justo a António este pedido e decide então fazer-lhe um resumo da sua vida: nasci em Lisboa numa tarde de Fevereiro de 1951. Sou filho de um mulato (de ascendência paternal cabo-verdiano) minhoto de Famalicão, afagador de profissão e de uma mulher transmontana de Alijó, doméstica de profissão e que trabalhava, às vezes, no que aparecia, tendo por fim abraçado a restauração, sendo uma excelente cozinheira. Eis a minha identificação.
Mas Maria Lua não se dá por satisfeita e diz-lhe:
– Não, meu lindo! Quero saber tudo, em pormenor. Conta-me onde nasceste e o que fizeste até hoje. Quero mesmo tudo.
Está bem, eu vou contar-te tudo:
 - Nasci na Maternidade Alfredo da Costa, fui criado no Casal do Serradinho, num sítio entre o Lumiar, a Ameixoeira e a Charneca. Um lugar com sete humildes famílias, pais de onze crianças, viviamos em pequenas casas modestas e pobres. Os nossos pais eram trabalhadores incansáveis, pessoas sérias, honestas, respeitadoras e respeitadas. Sentíamos que éramos amados pelos nossos pais. Eles proporcionaram-nos um crescimento são, saudável, equilibrado e harmonioso. Enquanto fala, António olha o infinito e na boca aparece-lhe um leve sorriso, como se estivesse a visualizar aquele lugar com ternura. O que leva Maria Lua a beijá-lo e a dizer-lhe:
– Estás emocionado, meu querido?
– Só um pouquinho, sabes? É bom recordar.
– Às vezes, quando as memórias são boas – diz Maria Lua – mas continua, meu bem.
– Este Casal do Serradinho tinha cerca de quatro hectares e, por ser vedado, proporcionava-nos um ambiente seguro, calmo, acolhedor e natural. Eu era um menino feliz. Brincava com os outros petizes: subia-mos às árvores, corríamos e assim íamos descobrindo o mundo.
Foi aqui que eu numa manha solarenga de primavera vi pela primeira vez uma junta de bois a puxarem o arado que, com a mão firme do boieiro se mantinha direito e rasgava a terra revolteando-a e deixando-a ficar em ondas, de cor castanho claro, a cheirar, qual perfume delicioso, a terra molhada. Nós os garotos, depressa saltava-mos para dentro do sulco, atrás dos ratinhos cinzentos que espavoridos fugiam por verem a sua toca esventrada pela aiveca incisiva da charrua; aqui aprendemos que o que se come é a terra que no-lo dá; aprendemos a identificar as várias espécies de legumes e a conhecermos os seus nomes, bem como o nome das árvores e os seus frutos. Sendo que as novidades destes eram nossos, antes que qualquer outro ser os visse, nem os pássaros eram tão rápidos como nós; aprendemos ainda a identificar os animais de capoeira e os passarinhos; foi também aqui, que ajudados pelos nossos pais, aprendemos a soletrar as primeiras letras e algarismos, desenhados na Caderneta Maternal João de Deus.
Ah! Olha, foi igualmente aqui que nós, ainda meninos, começamos a aprender as coisas da sexualidade, ao veremos os animais a acasalarem! – Ambos soltaram uma gargalhada e ele acrescentou – Como vês, isto não tem interesse nenhum.
– Não, não, tem muito interesse e está a ser muito bonito, sobretudo a forma como estás a contar. Continua, por favor.
– Bom, foi ainda aqui que aprendemos que, para além do portão do casal, o Mundo era maior, muito maior! Quando ia-mos de mãos dadas com as nossas mães até ao Lumiar, Charneca ou Ameixoeira, pois era lá que as mães faziam as compras; foi assim que enquanto meninos aprendemos que existe o dinheiro e a importância dele para as transações.
Lembro-me que ao fazermos sete anos, agarrados às mãos das nossas mães, pela primeira vez fomos à escola. Lugar onde o Professor era rei e nós aprendíamos a ler, a escrever e a fazer contas.
Ainda retenho na memória as palavras que minha mãe me disse quando chegámos ao pé da professora: “Meu filho, aqui na escola quem manda é a Senhora Professora, tens de fazer tudo como ela te disser e, aí de ti – de dedo apontado para mim –, que a Senhora Professora me faça queixa” e voltando-se para a Professora disse-lhe, alto e bom som, para que eu a ouvisse bem: “Senhora Professora, quando ele se portar mal, chegue-lhe, carregue-lhe com força”. A professora tomara bem nota deste recado. Eu é que às vezes me esqueci…
Nesta Escola Primária da Ameixoeira conheci outro mundo. A ler, a escrever e a fazer contas, o bem e o mal, a ser bom e mau. Conheci outros colegas, rapazes e raparigas de quem ainda hoje recordo alguns nomes: o Pedro, o André, o Nuno, o Zé, o Victor, o Beto, o Tó, o Guilherme, o Joaquim, o Henrique, as duas Graças, as minhas primeiras namoradas, a Ilda, a Antonieta, a Fernanda e outros que o tempo varreu da minha memória.
Mas, nem tudo é sempre bom e em 1962, o meu pai morreu e a minha vida dá um trambolhão. Acabo num Colégio de rapazes em Lisboa. Os cinco anos passados neste colégio não foram maus… mas tive que crescer rapidamente. Aos dezoito anos inicio a vida profissional e aos vinte e um obrigaram-me a vir para a tropa. Agora, aqui estou, num continente diferente onde o Mundo se agiganta, deitado e tendo por quarto a natureza com o teto pintado de mil estrelas, abraçado à mais bela mulher e pondo em prática algumas das aprendizagens então feitas. Estou na guerra e ela é feia, brutal, selvagem até; mas tenho alguns bons intervalos, como este. Vez, aqui está o que foi a minha vida, nada de interessante. Quanto ao futuro? Bom, a Deus pertence. Estás satisfeita?
– Tiveste uma infância bonita. Já a adolescência… não me parece que tenha sido tão boa, e quanto ao futuro? Vamos ver… ah! Mas o magala também faz outras coisas… e a aprendizagem não foi nada mal… não senhor.
Beijam-se, enquanto as mãos percorreram os corpos explorando-os e tocando em todos os pontos que lhes proporcionam prazer, até atingirem aquele nível em que os corpos se querem fundir num só e, assim, atingem o êxtase arrebatador até que exaustos caiem prostrados.
Quando acordam já o Sol se anuncia, beijam-se e amam-se como se fosse a última vez. É ela que toma a iniciativa de se levantar, veste-se e despede-se de António com um longo beijo e por fim já montada na sua égua diz-lhe:
– Agora vamo-nos ver mais vezes, mas não te preocupes que eu dou sinal. Bon travail mon guerrier!
– Au revoir mon petit du chocolat! Volta depressa.
Ao entrar no seu quarto, António repara que os seus camaradas ainda dormem. Deita-se em cima da cama e faz uma revisão de tudo o que tinha vivido; quando começa a fechar os olhos, toca a alvorada! E, claro, logo que o Chaparro acorda quer saber onde é que ele tinha passado a noite. Este que ainda não tinha contado a ninguém da sua relação com Maria Lua vê-se obrigado a partilhar o seu segredo com os dois camaradas. O Chapinhas, mais reservado que o Chaparro está também ele em pulgas para saber a novidade. António sem entrar em pormenores diz aos camaradas:
– Trata-se de uma miúda que conheci, há uns dias atrás, e, que é só, a garota mais bela, mais meiga e mais encantadora que conheci na vida!
Os camaradas querem saber mais pormenores da noitada, mas António diz-lhes:
– Meus amigos desculpem, mas os detalhes são da minha exclusiva reserva; sintam-se felizes como eu me sinto: feliz, em paz, de bem comigo, convosco e com o mundo.
– Eh, pá! O tipo está apanhadinho de todo! Está apaixonado meu, olha… Olha para ele! – Diz o Chaparro para o Chapinhas de olhos muito abertos.
– Estou o que quiserem – corta António –, mas agora vamos à vida que o pequeno-almoço espera-nos. E olhem, que já tocou há algum tempo – dando assim o assunto por encerrado.

Sampaio Magalhães

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