O meu avô

Incentivado por uns e desafiado por outros, comecei a traçar no papel um esboço daquilo a que poderia chamar “Caderno de Memórias”. Depressa me seduziu a ideia de passar a escrito, não tanto a minha estória de vida, mas mais a dos outros. É sempre difícil falar de nós próprios de uma forma isenta, sem que nos transformemos nos “bons da fita”. E, nas poucas páginas desse caderno de memórias perfilam já algumas personagens, que pela sua importância na minha vida, acabaram por entrar no “quadro de honra” das minhas memórias afectivas.

Ao longo da vida, criamos ou não, determinadas empatias com as pessoas ou com as coisas; alimentamos isso como uma necessidade básica e tornamo-nos assim, em recolectores de empatias e de sentimentos; são esses sentimentos que povoam as partes mais recônditas do nosso cérebro e trazem ao de cima os personagens que lhes estão associados, segundo o nosso grau de interesse ou a natureza das nossas necessidades e dos nossos anseios.
Uma dessas personagens, é a figura do meu avô, do qual, guardo poucas, mas gratas recordações. Vejamos, o que dele consegui passar ao papel…

[...] Chega o Verão e, com ele, as chamadas férias grandes. Definitivamente, estas foram as férias que mais gostei; simplesmente por uma única razão: as conversas com os meus avós, ao cair da tarde, debaixo da figueira que tinham no seu quintal. A minha avó costumava contar histórias tradicionais da sua meninice e o meu avô contava as histórias passadas com ele no período da 1ª Guerra Mundial. Como tinha nascido exactamente em 1900, apanhou na sua juventude todas as histórias quentes da queda da Monarquia e da implantação da República… As suas histórias da guerra, contava-as como se ainda lá estivesse, com tal vibração e emoção que, ainda hoje, guardo na memória esses momentos.
 Era uma figura tipicamente ribatejana, daquelas que costumamos ver nos postais antigos: vestia camisa de linho, de mangas arregaçadas, colete cinzento e relógio de corrente no bolso, calças de cotim cinzentas e botas de cardas. Na cabeça, um barrete preto. Dentro do barrete tinha a “onça” de tabaco e o livro das “mortalhas”. Era sempre o mesmo ritual. Sentado num banco, tirava o barrete donde extraía o tabaco e as mortalhas; pousava o barrete no joelho, tirava uma mortalha, pousava o livro, abria o pacote e tirava a quantidade necessária de tabaco. À medida que ia falando, ia colocando o tabaco no papel e enrolava-o com a mestria adquirida ao longo de muitos anos. Passava o cigarro nos lábios; no fim de pronto acendia-o. Um primeiro travo… e, saboreava-o. Continuava a sua história. Gesticulava. O bailado das suas mãos com o cigarro na ponta dos dedos, mais se assemelhava a um maestro que, com a sua batuta vai marcando o compasso de uma música crescente, da qual adivinhamos que o seu final, só poderá ser épico. Ria-se, inclinava-se para a frente e, enquanto fazia passar pela minha mente as figuras heróicas de outros tempos, afagava o meu ombro ou o meu braço, como que puxando-me para fazer com ele essa viagem no tempo. Mais umas chupadelas e acabava por apagar a beata com os dedos. Os dedos calejados do trabalho do campo, amarelecidos pelo fumo da ponta do cigarro, impediam que se queimasse. O resto do cigarro era guardado religiosamente na orelha. Um dia pediu-me para eu lhe “enrolar” um cigarro e eu prometo não lhes dizer como é que me saí. Melhor foi, quando ele, numa outra ocasião, me pediu para lhe fazer a barba. Mas isso é uma outra história.
[…]

Agora, que também eu já sou avô, pergunto-me muitas vezes, se todos os avós costumam afagar o ombro dos seus netos…

Pssst…Você aí… já passou a mão pelo ombro do seu neto hoje? Não lhe posso garantir que ele irá escrever uma crónica daqui a trinta ou quarenta anos evocando a sua memória, mas afianço-lhe que ele o irá colocar no “quadro de honra” dos seus sentimentos.

António Monteiro
7 Fevereiro 2012


Comentários

  1. Confesso que tive a sensação de estar sentada debaixo da figueira, ouvindo o avô contar as suas vivências e fumando o seu cigarrito.(Estória de vida bem retratada).

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  2. Confesso que tive a sensação de estar sentada debaixo da figueira a ouvir o avô contando as suas vivências, enrolando e fumando o seu cigarrito, ao mesmo tempo.(Uma bela estória de vida!)

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  3. Deixei assim, agora mesmo, no Facebook:
    Acabo de ser levado, pelas mãos do seu autor, para a história de um avô.
    Engalinha-se-nos a pele quando começamos a ler o texto e, palavra a palavra, imagem a imagem, vamos sendo tomados pela suave e intensa ternura que se desprende da memória tão maravilhosamente escrita!
    Parabéns, amigo António Monteiro! Um abraço de muita amizade e gratidão pela partilha!

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  4. Antonio, que linda recordação! Confesso que me transportei, me senti observando esta cena. Como são adoráveis os nossos antepassados! Quanta sabedoria e experiências tem para nos passar. Se soubéssemos disto antes, teríamos muito mais histórias para passar aos nossos filhos e netos, não é mesmo? Obrigada por partilhar conosco este momento.

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