Sete metamorfoses do ser e do tempo
A água e a luz
A nossa casa imaginada junto à água e cortada pela luz.
Tu levantas-te, a madrugada escorre dos teus ombros, abres a janela de finas lâminas de madeira e dizes: está um dia perfeito, livre e repetido como o florir das ondas ordenadas.
Eu sorrio de te ver erguida em forma de planta, um pássaro espreita e nada mais existe.
O oiro do sol e a palidez da lua
O dia doirado pode esperar por nós que, envoltos por camadas de uma luz muito branca, voltamos a representar o começo de tudo. E depois saímos piscando os olhos e com o coração atento às linhas lisas do horizonte.
A água aos nossos pés está quieta, submissa. Não ousamos perder o espelho de nós próprios e as formas que ele nos revela. Suspendemos a respiração e mergulhamos fundo, intimamente, como no seio pálido e morno de uma noite pura e suspensa.
Uma onda e uma vela de um barco
Se não fosses tu, nada valia a pena. Se não fosses tu, não havia o mar, nem os peixes, nem a mitologia, nem a música, nem a dança, nem a brisa, nem as ramagens, nem os segredos.
Agora vais pela estreita e serpenteada faixa de areia e eu sigo-te, de imaginação a tiracolo, vendo outros seres nas formas das rochas e nos seus gestos imóveis e frios. O sol queima o sal e os pés saboreiam a areia, abrindo por vezes, sulcos de vazio. A onda desfaz a onda que trouxe atrás de si, de mão dada, como uma criança que se diverte no jogo do arco de espuma.
Cansado, espero que regressemos do jeito de uma vela de um barco que sente o vento.
As nuvens e o mar
Enquanto caminhamos, as nuvens, no céu azul, entretêm-nos com mil formas que nós adivinhamos com palavras: um chapéu, um gato, uma janela, uma baleia, um golfinho, uma criança a jogar à bola, um sofá branco virado do avesso. Eu quase nunca concordo e tu dizes que a minha opinião é inútil e que eu só quero ouvir falar em coisas impossíveis porque penso que devagar as pessoas se tornam transparentes. A verdade é que o mar está estendido à nossa frente e, todos os dias, as suas ilhas seguem, imperturbáveis, o seu curso.
É o tempo tocado de infinito, onde encontramos distância e proximidade.
Os sentidos e o susto
O ar à nossa volta vai ficando líquido. O ar é uma das formas do tempo.
Outras pessoas olham-nos de longe e não ousam falar-nos. Passam barcos e navios (um dia hei-de falar do som dos barcos e do rosto dos navios!) e chegam até nós murmúrios que cada um de nós interpreta à sua maneira. Ouves? Ouço. Posso? Podes. E depois, como um susto, de repente, nos agarramos.
Foi a tempo. O perigo a querer afastar-nos daquele sítio, a querer demolir a nossa casa, a querer desfazer em pó, na lamentação húmida da terra, a ilha onde nos sustemos.
O rosto e o talento
Não tenhas medo, dizes. O talento existe em estado líquido, irriga o cérebro e, assim sendo, iremos encontrar uma solução, insistes. E eu vejo o teu rosto a falar e fixo os teus olhos como se mais nada houvesse de tão digno nestas paragens e sinto-os pássaros parados, suspensos contra o vento. Vieste para mostrar o quê? Como soubeste de mim? Chegará a hora em que abrirei os olhos e tu não estejas? Ouço os teus passos, saboreio a tua voz, sei onde o teu sorriso mora e imagino-te a entrar pela janela da casa inclinada ao vento junto à água onde, pequenas, as ondas se desfazem.
Desta forma o ser, na imagem límpida da imaginação criativa também se desvela, rumino de mansinho.
Uma promessa e uma manhã
Sei que é nas diversas formas do pensar e do criar e do agir que temos acesso à linguagem, e sei que a linguagem é a casa do ser. Nesta casa moram os seres humanos escolhidos. E são os poetas, os artistas, os cientistas e todos os trabalhadores criativos que devem guardá-la. A guarda que exercem é concretizar a manifestação do ser na medida em que a desvelam na linguagem (nas diversas linguagens) e nela (s) o conservam e dela (s) não podem fugir.
Mesmo sabendo que fazes parte desses seres humanos, tenho no entanto muito medo que, quando chegar a hora de eu abrir os olhos, eu confirme que tu terás desaparecido atrás daquela nuvem que nos espia desde que a manhã se fez manhã. Ainda que possas desaparecer de repente nos ecos do ser e do tempo, saberás agradecer às flores e saberás dizer-lhes que conheces o sabor a sal de uma lágrima furtiva.
Mas é imperativo que lhes digas que foi com tuas mãos que eu inventei e moldei sete metamorfoses do ser e do tempo, cumprindo aquela nossa promessa antiga de uma manhã futura, onde será desvelado o teu nome.
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