A reforma do ensino secundário de 1905


A propósito de um estudo de José Viegas Brás e de Maria Neves Gonçalves “Os saberes e poderes da reforma de 1905”, publicado na Revista Lusófona de Educação, 2009, 13, 101 – 121

Consertar, reordenar e redireccionar[1]                                      

CONSERTAR

Regressar pode ser uma ocasião para um novo olhar

Este é o ponto de vista dos autores do estudo quando abordam a reforma do ensino secundário de 1905. Um ponto de vista salutar e eficaz: a partir de uma leitura de documentos legais[2], de pareceres e estudos[3] bem como da imprensa da época os dois autores (sem o afirmarem) convidam o leitor a revisitar a reforma de 1905, deixando claro que o caminho é regressar à reforma de Jaime Moniz de 1894-95 e, a partir dela, interpretar as diversas sensibilidades que a pretendiam consertar. O ponto de partida é eloquente no sentido em que corresponde às consequências das ondas de contestação à reforma de Jaime Moniz: a questão principal é perceber quais “as inovações curriculares e quais os dispositivos pedagógicos que a singularizaram (a reforma de 1905) ”. Assim sendo, não custa afirmar que a reforma de Jaime Moniz tem claramente a responsabilidade nesta questão[4] e daí que a metodologia do estudo assuma o currículo enquanto construção social, por um lado, e que considere uma conexão entre saber e poder, por outro. Por isso o desenvolvimento do estudo aborda, sucessivamente, a inclusão da educação física no currículo[5] (e a consequente valorização do corpo), a simplificação das matérias de ensino, a redução das horas lectivas[6] e a utilização do “caderno diário” (como uma forma de regulação do sistema). E, nesta linha, não podem os autores deixar de concluir que a reforma de 1905 não podia deixar de ter em conta a reforma de 1894-95 e que, ambas tiveram directamente a ver com a formação das futuras elites governantes.


Atentemos um pouco na génese do diploma legal da reforma

Preparada por Abel Andrade, a reforma de 1905 que materializou no Decreto de 29 de Agosto de 1905[7], teve em conta opiniões especializadas[8]. Mas houve um acontecimento que foi decisivo para a desencadear, ou seja, a realização de uma investigação ao Liceu Central de Lisboa, em Julho de 1902, na sequência de um conjunto de queixas enviadas à Direcção Geral da Instrução Pública, acerca da forma como tinham decorrido os exames. Seguiu-se um processo relativamente atribulado que veio a culminar, em Outubro de 1904, num “Projecto de Reforma da Instrução Secundária” sob a forma legal de uma Portaria, apresentado ao Ministro do Reino e submetido à apreciação do Conselho Superior da Instrução Secundária, aos reitores dos liceus centrais e a uma comissão composta por vinte e um professores de liceus. Merece ainda realce a petição de um conjunto de pais e de tutores[9] de alunos de liceus no sentido de modificar o regime de instrução secundária que vigorava desde 1894-95. Nesta petição destacam-se, entre outros, os seguintes dados: a necessidade de organizar instalações para o desenvolvimento da educação física; a necessidade de reduzir o tempo de trabalho dos alunos, a revisão dos programas e a redução da língua latina; a necessidade de conceder maior liberdade ao ensino particular; a necessidade de se criarem mais três liceus em Lisboa e se criem, também em Lisboa três edifícios de centros de recursos educativos (bibliotecas, laboratórios, museus, material didáctico).

REORDENAR

A Educação Física converte-se em saber

A questão principal a considerar prende-se com a necessidade de conhecer os mecanismos que levaram a que a Educação Física fosse considerada no currículo dos liceus portugueses e, ao mesmo tempo, a necessidade de “estabelecer o elo de ligação com os procedimentos que dela dependem”. E duas ordens de razões se perfilam. A primeira que considera o modelo alemão de ensino e a segunda que entende que o Estado deve também ser responsável[10] pelo desenvolvimento físico e pela saúde dos alunos durante um período crítico do deu desenvolvimento…Esta era ainda uma forma de combater o surto de tuberculose que grassava no país. A inclusão da Educação Física no currículo implicava que, de imediato, se diminuísse o número de horas diárias de trabalho para que os alunos pudessem realizar exercício físico; que se reorganizasse o espaço físico dos liceus; que se organizassem jogos de campo e se montassem aparelhos de ginástica e que se preconizasse o semi-internato. A revisão curricular estava na ordem do dia[11] e reordenar era o objectivo.

O caderno escolar é um dispositivo pedagógico[12] e um novo mecanismo de regulação

           Importa assinalar a importância do suporte teórico que subjaz à consideração do caderno escolar[13] como um novo mecanismo de regulação. Desde logo porque melhorava o processo de aprendizagem, valorizava a relação professor/aluno e dinamiza a interacção entre os liceus e as famílias; depois porque se realçava o papel do trabalho individual e se organizavam as aprendizagens e ainda porque valorizava uma escola já organizada em classes[14] e onde o papel cooperativo dos professores já era importante.

REDIRECCIONAR

Aspectos relevantes da reforma de 1905

           Consideremos os aspectos mais relevantes[15]: a liberdade de ensino; a inclusão da educação física no currículo; a supressão do livro único; o desenvolvimento das Ciências Físico – Naturais; o reforço da componente científica e utilitária da aprendizagem; a criação de gabinetes de estudo experimental; a relevância dada ao Desenho; a equiparação dos professores de desenho aos professores de outras disciplinas; a construção de edifícios escolares específicos; a aquisição de material didáctico e mobiliário escolar. Não teremos dificuldade em perceber a sua estreita ligação à reforma de Jaime Moniz.

Novo saber, novo poder?

              A afirmação dos autores, ao concluir o seu estudo, parece não deixar dúvidas de que estão convencidos que a reforma de 1905 materializava um novo saber e um novo poder. Um novo poder que se traduzia no ataque (e dos mais diversos quadrantes) aos resultados da reforma de Jaime Moniz e um novo saber que resultava da necessidade de incorporar no currículo da instrução secundária novos conhecimentos científicos e pedagógicos. Nestes as principais inovações curriculares (no sentido de redireccionar) prendem-se, por um lado, com a prática da saúde ligada ao desenvolvimento físico e à valorização do corpo[16] e, por outro, com a introdução de dispositivos pedagógicos (dos quais se destaca o caderno escolar) que alteraram as práticas pedagógicas quer a nível de funcionamento interno dentro dos liceus quer na relação que entre estes se estabelecia com as famílias[17] no sentido não só de valorizar o trabalho individual quanto controlar os comportamentos dos alunos. E, naturalmente seria mais fácil perceber as capacidades e potencialidades dos alunos.

Mudar o culpado

             Considerar que a reforma Jaime Moniz era a principal responsável pelo estado de decadência a que tinha chegado o ensino é uma concepção relativamente simplista de entender a causalidade[18] que costuma ser considerada nos fenómenos humanos. A ideia de que possa haver acontecimentos contingentes quer dizer sem causa identificável, torna-se insuportável. Talvez, por isso, quando se identifica uma multiplicidade de causas que se cruzam no desencadear da reforma de 1905, haja necessidade de tentar encontrar um verdadeiro culpado: a reforma Jaime Moniz[19]. Podemos, neste caso, falar de uma lei de conservação da causalidade: quanto menos a causa de um acontecimento é visível mais longe a temos de procurar. E assim o que se torna essencial não é conhecer as verdadeiras causas mas encontrar o verdadeiro culpado. Faça-se justiça aos autores quando intuíram esta questão ao afirmar que “devemos, no entanto, que a reforma de José Eduardo Coelho deve ser vista em articulação com a reforma anterior de Jaime Moniz”. Tempo e paciência ajudarão a entender a complexidade de causas contingentes que deram origem às alterações introduzidas na gramática escolar.

lms
Janeiro 2012


[1] Cf. Jorge Ramos do Ó, A Reforma de Jaime Moniz, Estudos do Século XX, 2006 – n.6, p. 92: “A minha nota final prende-se com o significado histórico do conceito de Reforma. O século XX, sempre que falou dela, recorreu a vocábulos próximos de “alijar”, “cortar” ou rasgar, mas o que estava na verdade era a procurar melhorar o modelo criado em finais do século XIX por Jaime Moniz. Consertar, reordenar, ou redireccionar seriam certamente palavras mais apropriadas para caracterizar o que os políticos de então fizeram”.
[2] Portaria de 12 de Outubro de 1904 e Decreto de 29 de Agosto de 1905.
[3] Destacam-se: “Relatórios do Liceu Central de Lisboa e de presidentes de júris acerca do ensino e exames neste liceu” (1903), “O regime de instrução secundária e os seus resultados” (1903) e o “Parecer em separado do vogal do Conselho Superior de Instrução Pública, Dr. Abel Andrade” (1904).
[4] Cf. Jorge Ramos do Ó, idem, p. 82: “O currículo moderno nascia assim, em 1894 – 95, como mais uma artefacto social a que as autoridades escolares se socorreram para repor a ordem perdida e, sobretudo, repovoar os liceus do estado, então quase desertos”.
[5] Considere-se a atenção (no que se refere à fundamentação teórica) dos autores a esta questão: “Daí, Goodson (1995:67) nos dizer que um dos problemas relacionados com o estudo do currículo é o facto de se tratar de um conceito multifacetado, construído, negociado e renegociado em vários níveis e campos”.
[6] Considera-se ainda importante ponderar a leccionação da língua inglesa aduzindo argumentos válidos. Cita-se aqui o próprio Abel Andrade: “…há, principalmente, três pontos que me despertam simpatia especial: o desenvolvimento das línguas modernas, nomeadamente da língua inglesa; o desenvolvimento e melhor dotação do ensino das ciências naturais; a introdução da educação física, até agora posta de parte sem motivo plausível”.
[7] Trata-se de um diploma legal que comporta inovações de âmbito curricular e de inovações no domínio das metodologias do ensino aprendizagem propondo nomeadamente uma maior interacção entre os liceus e as famílias.
[8] Foram consideradas as opiniões e estudos: da Associação do Magistério Secundário Oficial, dos reitores, o relatório “O regime de instrução secundária e os seus resultados”, artigos publicados na imprensa e outros opúsculos. Em três palavras simples podemos dizer que foram consideradas as opiniões: dos jornais e revistas, dos professores e dos pais.
[9] Considere-se também que, em cinco de Agosto de 1905, surgiu uma petição dos pais, directores dos colégios e professores do ensino particular do Porto em que se destaca essencialmente a liberdade de ensino com o objectivo de “quebrar as cadeias que manietam o ensino particular”.
[10]  A não responsabilidade do Estado pela saúde e pelo desenvolvimento físico dos alunos era considerado um vício educativo por Clemente Pinto, reitor do Liceu Central de Lisboa.
[11] Realce-se o parecer da comissão sobre o projecto de Reforma da Instrução Secundária: “…entende que o aluno, após excessivo trabalho escolar, não pode, sem um largo período de descanso intelectual e exercício físico, dar seguimento à continuidade do trabalho. Neste sentido, a comissão considera que a criação do ensino da ginástica vem ainda tornar mais completa esta disposição. Sustenta que os exercícios gímnicos são indispensáveis à educação física dos alunos e que a exclusividade do trabalho intelectual levaria ao esgotamento dos mesmos, daí a propor a inclusão da ginástica em todas as classes. O ensino do canto coral, para além de completar parte do ensino estético do curso liceal, vem constituir uma preciosa ginástica dos órgãos da voz, do ouvido e da respiração”.
[12] Considere-se a importância que lhe era atribuída por Abel Andrade: “Da própria natureza do assunto e da influência do caderno escolar resulta a absoluta necessidade de as autoridades académicas no lançarem no caderno escolar notas que não hajam ponderado maduramente quer se trate do elogio, que sé é eficaz quando bem aplicado em vista do modo de ser de cada aluno, quer se trate de censura, que tem de ser aplicada com a máxima prudência”.
[13] O caderno escolar é introduzido no sistema através de uma circular referindo que o mesmo seria distribuído gratuitamente aos alunos e que estaria disponível para consulta nos exames. Destinava-se, assim, à anotação sucessiva do percurso escolar, incluindo os aspectos disciplinares e as diversas classificações obtidas em cada uma das disciplinas.
[14] Cf. Jorge do Ó, ibidem, p. 79: “Há unanimidade na historiografia em reconhecer que a instituição escolar apresenta uma gramática escolar estável de há muito tempo e que, sob os aspectos mais variáveis, nos aparece como impermeável, na sua lógica organizacional, às tentativas de a reformar, durante o século XX. A escola de massas tem resistido a modificar as suas estruturas mais elementares. Os alunos do também chamado ensino médio permanecem agrupados em classes graduadas e com uma composição bastante idêntica quanto à idade, quanto aos conhecimentos e quanto aos comportamentos; os saberes escolares, de aspiração enciclopédica e assumidamente entrelaçados, vêem-se delimitados em programas aprovados e publicados pelo Governo que são depois traduzidos em manuais escolares, também eles, oficialmente sancionados…”.
[15] Consultar o estudo, p. 114.
[16] Consultar o estudo, p. 116: “Assim, a reforma de 1905, abriu caminho para um novo conhecimento e para uma nova construção do corpo. O corpo fica sujeito a um novo jogo de forças. Por forças devemos entender a relação entre o biológico, o social e o político. O corpo, no sentido nietzsheano, é constituído por esta relação de forças. Um corpo só é corpo porque é configurado por forças que entram em relação”.
[17] Consultar o estudo, p. 117: “Entre o liceu e a família exige-se uma colaboração mais minuciosa, um conjugar de esforços para potencializar a capacidade de regular o comportamento do aluno”.
[18] Se o aparecimento de um fenómeno se relaciona directamente com outro fenómeno b podemos dizer que a é a causa de b. Esta é a definição clássica, devida a Leibniz, de causalidade que segundo Kant, é absolutamente necessária à nossa compreensão do mundo. A causalidade tem, por isso, enormes implicações. Por exemplo, impondo a anterioridade sistemática da causa sobre o efeito, impede viagens no tempo no sentido em que podemos retroagir no passado para modificar uma sequência de acontecimentos que já tiveram lugar.
[19] Cinco são as grandes novidades na reforma de Jaime Moniz: a introdução do livro único; o aumento do horário escolar; a organização da prática pedagógica; o quadro de deveres dos alunos; o papel dos exames e nestes o papel dos exames de passagem.

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