O CORPO E A APRENDIZAGEM

Comentário crítico ao artigo “Muscles, morals and mind: craft apprenticeship and formation of person”.[1]

Sete notas a tiracolo

O mapa
I have argued throughtout this paper that is with bodies, and not merely words, that people learn, express, interpret, improvise and negotiate – in a word, “craft” – their ways of knowing in de world (Harris, 2007). Fielwork with craftspeople reinforces the idea that the body is a prime site for establishing an education for social citizenship. Like craft apprenticeship, all learning should be embedded in a framework that scaffolds a lifelong pursuit of physical, spiritual and intellectual development, making individuals into valued and responsible agents within their communities of practice.

É com esta conclusão que termina este artigo. Com ela podemos desenhar um mapa e podemos ver-nos como cartógrafos experimentais. Neste sentido podemos abordar os resultados da investigação, mapeando o espaço positivo do seu território conceptual.
Trata-se por isso de uma conclusão que nos abre pistas…
Desde logo porque nos remete para a afirmação que é com o corpo que primeiro (no sentido originário) as pessoas aprendem e se afirmam como humanos; depois porque alerta para a importância e o significado da palavra "craft" no sentido em que a aprendizagem de uma actividade artesanal (ofício) é uma forma de aprendizagem e de socialização; finalmente porque o autor pretende que à luz dos resultados da sua investigação marcadamente de antropologia situada (três estudos de caso em contextos geográficos e culturais diferentes), se entenda necessário e possível repensar os sistemas educativos.
Trata-se de um texto denso e interessante que não só se destina a todos aqueles que se envolvem num trabalho relacional (investigadores, professores, terapeutas, educadores e trabalhadores sociais) quanto questiona, interpela e apela a diversos e diversificados saberes científicos.

A construção teórica de um campo de investigação
The paper  considers apprenticeship as a model of education that both teaches technical skills and provides the grounding for personal formation.

Entende Trevor Marchand (revisitando as diversas contribuições teóricas)[2] que o conceito de aprendizagem, ao longo das últimas três décadas[3], se enriqueceu com um conjunto de qualidades e de características que o transformaram no modelo ideal de "aprender a aprender" cujos efeitos se reflectem quer no envolvimento do corpo quer no desenvolvimento e na socialização individual.
Utilizar uma chave hermenêutica (na leitura dos resultados da investigação) que tenha em conta a biologia e a biografia parece ser imperativo, dando-se destaque (o que lhe dá coerência) ao conceito de habitus com o sentido que lhe atribui Bordieu.
Também por isso se pode considerar que a escolha deste campo de investigação tenha a ver não só com a formação inicial do autor (arquitectura) mas ainda com a sua formação complementar (antropologia) e também com a sua experiência de vida no Canadá e na Inglaterra.
O método escolhido (os estudos de caso: uma participação na actividade artesanal de construção e de formação, uma leitura comparativa) é uma opção pensada, ponderada e decidida.
A investigação, com um significante peso antropológico[4], desenvolveu-se em três tempos e em três contextos de trabalho diferentes: no Yémen (1996 – 97), no Mali (2000) e em Inglaterra (2005 – 07).
Podemos sem dúvida afirmar que a investigação se concentrou na aprendizagem (técnica, pessoal e relacional) em contexto de trabalho humano artesanal, o que nos permite uma ligeira digressão…Assim.
Sabemos que o trabalho é o objecto de uma ciência aplicada (a ergonomia); ciência que nos últimos cinquenta anos vem confirmando que o trabalho humano pode ser estudado por várias disciplinas especializadas tais como: a tecnologia, a fisiologia do trabalho, a psicologia do trabalho e ainda a sociologia do trabalho e a economia do trabalho. Ressalve-se, porém, que a ergonomia é uma ciência aplicada e que o seu objectivo não é apenas o conhecimento mas também pretende avaliar a acção e o contexto de trabalho, no sentido de reformar condições de trabalho inadaptadas. Inadaptadas para quem? Para o homem que trabalha porque em ergonomia como queria Protágoras "o homem é medida para todas as coisas que são e para todas as que não são".
Considerada esta ligação desta investigação à ergonomia não ficam dúvidas do contributo e da convergência de vários saberes nestes estudos de caso.

Dez anos de trabalho e de reflexão
The research presented is based on long- term anthropological fielwork with minaret builders in Yemen, mud masons in Mali and fine-woodwork trainers in London.

A investigação, revestindo a forma de estudos de caso, desenvolveu-se em contextos culturais diferentes e ao longo de cerca de dez anos. Apoia-se na ideia de trabalho artesanal (craft), ideia que permite explicar toda uma série de processos de construção de conhecimento e de conhecimento pertinente, conducentes à identificação da identidade humana. O envolvimento directo e incarnado do autor na actividade de construção de minaretes, de casas e trabalho de carpintaria, por um lado, e os diversos registos e em diversos suportes que foi fazendo ao longo do tempo (e o tratamento dos dados) por outro, permitem-lhe revelar a lógica de um conjunto de comportamentos sociais que resultam de um conjunto de regras adquiridas numa educação não formal. Esta caracteriza-se pelo envolvimento e pelo desenvolvimento do corpo no trabalho e na actividade física e mental.
Desta forma de aprendizagem através do corpo resulta também uma forma de socialização que se traduz numa educação social e numa ética de responsabilidade[5]. É por isso que para além de ser fundamento das nossas normas sociais e valores morais, o corpo é essencialmente o médium ou ferramenta através do qual eles são transmitidos, inscritos e preservados na sociedade. Os códigos éticos são meras abstracções até lhes ser dada vida através da incorporação em disposições e acções corporais.   

O corpo humano e o conhecimento
These case studies of on site learning and practice support an expanded notion of knowledge that exceeds propositional thinking and language and centrally includes the body and skilled performance.

As actividades físicas e mentais, que apenas artificialmente podem ser separadas, impõem, quaisquer que sejam as suas modalidades de execução, um gasto de energia. Esta energia libertada pelo organismo varia quantitativamente em função da intensidade do trabalho executado. Por sua vez, o funcionamento do organismo considera três aspectos essenciais: o aspecto químico de constituição da matéria viva; o aspecto osmótico que assegura as transferências de energia e o aspecto mecânico cardíaco e teleocinético que asseguram as transferências energéticas internas e as relações externas, respectivamente.  
É, nesta altura, que temos o corpo em acção[6] e em condições de aprender num determinado contexto[7]. Apreender esta forma de aprender e de adquirir conhecimento, obriga o investigador a envolver-se na actividade, a ter em conta o contexto e a contextualizar o próprio contexto[8].
Em linha com E. Morin podemos afirmar que o que se ensina (sem deixar de ter presente a importância atribuída à linguística e aos estudos desenvolvidos pelo positivismo lógico em meados do século passado) fornece conhecimento, fornece saberes mas não se ensina o que é o conhecimento.
E, sendo assim, como é que podemos apreciar os prazeres do pensamento sem reconhecer a sua dimensão somática – o pulsar da energia, as palpitações da excitação e a aceleração do sangue que acompanham os nossos exaltados voos de contemplação? O conhecimento é mais sólido quando incorporado na memória muscular de um hábito capaz e numa experiência profundamente incarnada.
Tal como o pensamento humano não teria sentido sem a incarnação que situa o sujeito pensante e senciente no mundo, dando-lhe assim uma perspectiva de pensamento, também a sageza e a virtude estariam vazias sem a experiência diversa e plenamente corporal pela qual elas se manifestam nos discursos incarnados, nos actos exemplares e numa presença radiante.

A amplitude dos estudos de caso e as suas variações
Crafts – like sport, dance and other skilled phisical activities – are largely communicated, understood and negotiated between practitioners without words, and learning is achieved through observation, mimesis and repeated exercice.

Tudo o que gostaria de saber sobre o papel do corpo na aprendizagem podia ser um possível subtítulo deste trabalho de investigação que se propõe explicar como em tempos e contextos culturais diferentes o envolvimento do corpo em actividades físicas orientadas (do desporto à dança e a outras actividades físicas) é o factor primordial para o conhecimento e para a socialização.
De facto o corpo é aquilo a partir (e através) do qual cada um percebe ou manipula os objectos do mundo onde está concentrado, mas expressa também a ambiguidade da existência humana mostrando o humano como um ser que partilha uma mesma espécie com a sua diferença individual. É ainda evidente que a nossa experiência e o nosso comportamento são muito menos programados geneticamente do que em outros animais. A neotenia adaptada à espécie humana é que nos permite uma plasticidade comportamental.
Ao considerar aquele subtítulo, num primeiro momento a atenção iria para uma aproximação às teorias do conhecimento e, para acesso a estas, valeria ter em conta que não pode ignorar-se o uso de línguas diferentes e que cada uma destas está ligada a um mundo experiência diferente. Num segundo momento, uma digressão pelos conceitos de art, craft e performance permitiria aceder a um modelo para aquilo a que chamamos significado. Finalmente, deveríamos ter em conta os meios e os materiais (dos tecidos à música) que podem alargar o tempo presente na aprendizagem através do corpo e que podem construir um "tempo - fresco": o ritmo, a variação, a forma, a cor, a voz, o som e a plasticidade.

O sentido de uma prática[9]
The need for an interdisciplinary study of communication and understanding from the body is therefore underlined, and the paper suggests a way forward drawing on linguistic theory and recent neurological findings.

A expressão mais visível é a de um conjunto de competências técnicas que podem ser descritas como uma forma de conhecimento fundada na prática, de acordo com uma integração (coordenada e orientada) de técnicas do corpo e de utilização de ferramentas na utilização e no manuseamento de diversos materiais. Supõe ainda o ritmo e a intensidade para ajustar ao que se pretende a matéria utilizada e assenta em comunicação não verbal (o estudo de caso desenvolvido em Londres tem aspectos significativamente diferentes), exigindo por vezes directivas, orientações e comentários que tornam necessária uma comunicação oral entre actores com responsabilidades diferentes.
Deste processo decorre: a capacidade de conceptualizar figuras e formas descoberta na realização de uma actividade; o conhecimento proposicional no sentido em que a comunicação verbal se expressa através das negociações que se estabelecem entre trabalhadores e fornecedores e outros; a activação de conhecimento secretos que se visualizam nas invocações (que assentam, por exemplo, em versículos do Corão); de conhecimentos animistas e secretos que se podem traduzir em amuletos e outros objectos e que, de forma escondida ou visível, ficam associados à obra realizada.
Merece realce o facto de estes conhecimentos secretos serem essenciais não só para a construção de uma obra, por um lado, mas ao mesmo tempo poderem revelar o espantoso poder das palavras, poder que se considera poder modificar o destino e poder mudar o mundo, por outro lado.
Não custa concluir que as capacidades de aprendizagem de um indivíduo são um produto das suas possibilidades de compreensão, de categorias cognitivas, de inteligência e de experiência. A experiência depende não só de um saber transmitido socialmente e da evolução sócio-cultural do indivíduo como dos interesses e motivações, actualizados em contextos diferentes.

Entre o saber e a ignorância
It is argued that the validation and promotion of skilled practice as “intelligent” is necessary for raising the status and credibility of apprentice-style learning within our Western systems of education.

Entre o saber e a ignorância (todos os que trabalham em laboratório o sabem) há a experiência. Podemos não concordar com ela; podemos dizer que não é significativa; podemos considerar que algumas hipóteses não fazem sentido; mas ninguém deve ignorá-la.
Mas esta questão é particularmente importante quando se trata de decisões políticas no âmbito dos sistemas educativos. Talvez por esta razão seja necessário imaginar um poder novo que não se defina nem pelo seu saber, nem pela sua capacidade de truncar os projectos, mas que se defina pela sua capacidade de acompanhar as experiências em curso e pela sua capacidade de reconhecer a qualidade das diversas aprendizagens. Deste poder não se espera que nos diga o que devemos ou não devemos fazer, mas esperamos que ele nos explicite, de forma clara e com obstinação, o tipo de aprendizagem que devemos privilegiar, já que o importante é fomentar a vontade de aprender.
É nesta linha que aos sistemas educativos se pede abertura e flexibilidade para as diversas idades da vida com a ideia clara e límpida de que o físico, o ético e o social são o que mais importa na construção da pessoa humana.


lms
Janeiro  2012

[1] Este artigo, cujo autor é Trevor H. J. Marchand, foi publicado em “British  Journal of Education Studies, ISSN 0007 – 1005. DOI number: 10.1111/j.1467 – 8527. 2008. 00407. Vol.56, Nº. 3, Setember 2008, pp 245 – 271.
[2] Destacam-se os autores e obras: ADAMSON, G. (2007) Thinking Through Craft (Oxford, Berg); MAUSS, M. (1934) Les techniques du corps, Journal de Psycologie, 32 (3-4). Reprinted in his Sociologie et Anthropologie (1936) (Paris, Puf); DORMER, P. (1997) The culture of Craft (Manchester, Manchester University Press.) ; MAGUIRE, M. (1999) Modern apprenticeships: just in time, or far too late? In P. AINLEY and H. RAINBIRD (Eds) Apprenticeship: Towards a New Paradigm of Learning (London, Kogan Page), 163-175.
[3] A afirmação que incia a Introdução, p. 246, não deixa dúvidas: “Interest in apprentice-style learning has growm steadily over the past three decades among communities of social scientist and educators
[4] Cf. breve citação texto do autor: En 2001 et 2002, pendant la saison froide et sèche, celle où l’on construit, j’ai travaillé avec deux équipes de maçons à Djenné. L’objectif, pour l’anthropologue, de mon travail de terrain était de mieux comprendre la gestation de l’apprentissage technique et la socialisation qui se produit pendant la formation du maçon, et qui finalement forge son identité professionnelle, ses pratiques et son sens de sa responsabilité d’artisan qualifié. Mon travail à Djenné fait partie d’une étude comparative plus large, transculturelle, sur l’apprentissage et la connaissance fondée sur l’aptitude dans les métiers de la construction, et qui inclut mes terrains avec les maçons du Yémen (Marchand, 2001) et avec des ébénistes talentueux (Marchand, à paraître, c). En bref, mes études sur les maçons de Djenné démontrent que leur pédagogie, pour l’essentiel, n’est pas fondée sur la parole, ni n’est régulée ou prescrite dans des termes concrets par leur association professionnelle (le barey ton) ou aucune autre institution jouant ce rôle. Au contraire, les performances qualifiées et les pratiques qu’elles incorporent sont enseignées et apprises au sein d’interactions quotidiennes fluides sur le chantier, de sorte que le curriculum de cette formation par apprentissage et ses standards sont négociés et sanctionnés à l’intérieur même des échanges professionnels entre maçons (Marchand, 2001 ; 2003a ; à paraître a).
[5] Há um aspecto paradoxal que merece ser realçado em qualquer dos estudos: mesmo quando um trabalhador executa um trabalho individual o resultado é sempre um trabalho de grupo.
[6] Cf. Richard Shusterman, Pensar através do corpo, educar para as humanidades: um apelo para a soma estética, in Marte nº3, 2008, pp98 e 99: “Mas o corpo não é só uma dimensão essencial da nossa humanidade, é também o instrumento básico de toda a performance humana, o utensílio dos utensílios, uma necessidade para toda a nossa percepção, acção e mesmo para o pensamento. Tal como construtores habilidosos precisam de um conhecimento especializado dos seus utensílios, também nós precisamos de um melhor conhecimento somático para melhorar a compreensão e performance nas artes, nas ciências sociais e para o avanço da mestria na mais alta forma de arte – aquela relativa ao aperfeiçoamento da nossa humanidade e ao viver de uma vida melhor. Precisamos de pensar cuidadosamente através do corpo de modo a nos cultivarmos e a edificar os nossos estudantes, porque a verdadeira humanidade não é um dado genético mas uma realização educacional na qual o corpo, a mente e a cultura devem estar completamente integrados.”
[7] Cabe deixar aqui uma ligeira referência a um estudo (The Philosophical Baby) que um grupo de psicólogos, linguistas e neurocientistas desenvolveu (curiosamente ao longo de dez anos) estudando a mente de crianças que ainda não sabem falar. Em laboratório e com a ajuda de peluches, brinquedos, fantoches e animações computorizadas, criaram jogos capazes de mostrar o que os bebés entendem do mundo. E descobriram que eles têm noções de aritmética, conhecimentos sociais, memória e de física.
[8] Cf. citação de texto do autor: “My concentration was disrupted.‘What are you looking at?’, the man asked with detectable suspicion in his voice. He had come up beside me unnoticed as I stood staring upwards, my attention absorbed in the activities of several builders labouring precariously at the top of a new minaret tower. ‘Who are you working for?’, he continued. He was an elderly man, with a distinguished greying goatee, and sharp, dark eyes. ‘No one’, I replied. ‘I’ve come to Sana’a to study traditional builders’. His face softened a little, and he gestured to me to follow him.
[9] Cf. citação de entrevista do autor: “Muhammad’s approach to building materials seemed to transcend objective knowledge; he knew instinctively how to work with them, aware of their potential and limitations, not just generally, but of each individual brick and stone. Bricks of a certain quality were kept for carving, and others were relegated to the infill of walls; dressed stone was selected or rejected according to its colour, solidity, and grain. In Islamic Art and Spirituality (1987:56), Hossein Nasr observes that traditional Muslim craftsmen ‘had a profound sense of the nature of materials.., stone was always treated as stone and brick as brick’, and the materials were masterfully integrated ‘into a whole reflecting the ethos of Islamic art’. This characterised the work of Muhammad al-Maswari: his knowledge and craftsmanship transformed the ‘act’ of building into an ‘art’.





Comentários

Enviar um comentário

Mensagens populares